Não se espere encontrar neste volume um acto revivalista ou saudosista. Antes um olhar atento que denuncia os erros de ontem e que hoje, nos nossos dias, se repetem.
O acto poético de Manuel C. Amor é, por isso, uma arma. Mas é uma arma que radica, como afirma o poeta,
“Na profundidade das contradições”(1)
Nesse lugar onde se bebia
“o sentido das palavras camufladas.”(2)
Aliás, ler poesia é um desafio maior. Não há outro género onde a palavra adquira mais valor do que este. É através da palavra poética, prenhe de música e significado, que se desperta no leitor, em simultâneo, tanto o lado sensível como o lado racional. E é capaz de acordar em nós outras fórmulas para a interpretação do mundo.
Naturalmente que me refiro à boa poesia.
Coloco a obra de Manuel C. Amor, não só este livro, mas os múltiplos esparsos que tive a fortuna de ler, neste patamar.
De facto, através do seu registro poético, temos acesso, o nosso próprio acesso a uma mundivivência plena de pulsação, mas de uma pulsação não artificialmente criada, mas verdadeira, plena de autenticidade.
Logo no título: “A metáfora das asas” há esses indícios. Que asas são estas sob a condição de metáfora, não de uma qualquer metáfora, mas de a metáfora?
Poderemos atribuir o valor de liberdade a estas asas, nada mais normal. Aliás, a palavra liberdade surge logo no poema “Como se fosse um prefácio”.
No entanto, repare-se que Manuel C. Amor escreve, embora sob pseudónimo, que
“A liberdade
é um fardo muito pesado”(3)
Ou seja: embora se possa ler este tomo sob esse signo, à luz e contraluz desse signo, estas asas, para mim, representam mais Hermes do que propriamente Espártaco.
São mais mensagem, transmissão de testemunho, do que liberdade, quebrar dos grilhões.
E porque referi duas personagens da cultura clássica europeia, talvez o que melhor se enquadra nesta minha leitura de “A metáfora das asas” não é Dédalo, embora este saiba do perder de algo precioso, o seu próprio filho: Ícaro; pelo que se tornaria urgente o passar da mensagem do erro, sequer por ter cumprido o seu objectivo, mas Sísifo, a figura de Sísifo.
Pelo menos este leitor, logo neste terceto o descobre.
“Há um gozo insano
no contestar
o que se perdeu outrora”(4)
ou noutro excerto pode ler-se o seguinte:
“Falem-me do canto de rouxinóis
eu falarei de um outro canto
aquele que emerge do fundo
das almas angustiadas”(5)
ou, porque a sabedoria popular diz que não há duas sem três, escute-se o seguinte:
“regresso à memória da matriz
para encher os olhos de sol.”(6)
Mas o certo, naturalmente que o certo aqui é o meu certo, é a inversão da leitura do mito de Sísifo efectuada por Albert Camus. Não é nesta obra o tempo de reflexão, o tempo de contemplação, o período que medeia o chegar ao topo e o regresso ao vale.
Antes é o próprio esforço de levar a pedra, a mensagem, até ao cume do monte. Torná-la alcançável ao homem, a todo e qualquer homem.
Mais do que isso: é o próprio instante da pedra, da mensagem, no cume do monte. É o abrir do livro, verdadeiro eclodir do poema.
Este é o instante mágico em que o ofício do poeta se expõe para a possibilidade do ofício do leitor. Ambos se municiaram dos mesmos artefactos: as palavras.
Cada um com a sua própria forma de delas tirar proveito. Ambos as sentem como suas nesse instante.
E o jogo de tese, antítese e síntese torna-se o verdadeiro mecanismo depurador da mensagem, a metáfora que eu, leitor, leio na palavra asas.
NOTAS:
(1) AMOR, Manuel C. - "A metáfora das asas". Edium Editores. S. Mamede de Infesta. 2008. P. 11
(2) AMOR, Manuel C. - Ob. Cit.. P. 11
(3) AMOR, Manuel C. - Ob. Cit.. P. 7
(4) AMOR, Manuel C. - Ob. Cit.. P. 7
(5) AMOR, Manuel C. - Ob. Cit.. P. 13
(6) AMOR, Manuel C. - Ob. Cit.. P. 18