quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 31


Vem, entra nas palavras como um rio
Que abraça o mar. Procura um certo encanto.
               A magia do verbo,
               Semente de desejo.

Sabia de um caminho, de um instante
Em que o poema nasce do silêncio
               Como um pássaro que abre
               O olhar desperto ao voo.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 30


            Uma dúvida nasce:
Pesa o corpo o caminho percorrido
Ou o báculo preso ao corpo pesa
            O peso do caminho?
Mas nada o detém, nada o passo cessa,
Nada lhe é sem resposta. Tem caminho
            E fé, o peregrino.
E nos beirais do olhar, possui uma ave
Que lhe desenha e guarda o seu destino.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 29


         Tu quoque, fili mi,
Em tuas mãos me trazes o silêncio,
         Essa palavra, fino
E frio fio, pátria sem nome,
         De um punhal sem memória.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 28 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 28


Serva de mui servir é esta candeia,
Esta voz que bordeja a cercadura
Do próprio verbo
Nado à flor do verso.

Serva a voz que regida rege o ritmo
E nos traz a candura do poema:
Uma serena imagem
Do mundo em movimento.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 27 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 27


Serenamente, ouçamos a canção
Do vento quando as suas mãos repousam
Na face do arvoredo.
Repara como a vida
Segue o seu curso. Nada os deuses deram
Por excesso. Há em tudo uma medida
Exacta. Mesmo o vento
Tem destino a cumprir.
A nós, resta o espectáculo da vida.
Contemplemos pois cada instante como
Criança na janela
Vendo um circo passar.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 26


Sente a palavra antiga, a que deram
Como moeda em troca de um silêncio.
            A dânaca na boca,
Na tua boca para que descubras
O sabor de ser nada. Ser retrato,
            Mero retrato ausente.
Quadro que se retira no solene
Ritual da galeria da memória
            Sob o olhar dos abutres
Que em círculo vigiam a tua obra,
A tua obra que como sua sentem
            Mesmo antes de ser nada.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 25


Pela coorte brota um doce canto
Que os deuses, no mais puro deleite, ouvem.
          Por sentirem a música
          Na tez de cada gesto,
Reabrem os caminhos do desejo,
Acordam o desígnio do fogo,
          A candura das águas,
          A epiderme da terra.
Inventam tudo, espaço para os homens,
E a nossa condição de recriar.
          Resignemo-nos, pois,
          A olhar somente o rio.
Nada do que façamos poderá
Mudar seu rumo: o ensejo de ser mar.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 24


Os acordes acordam na palavra,
Na adormecida estrofe do poema.
            São os olhos do sonho
            Que os despertam do pó.

Ou, talvez, as mãos, pássaros fluentes
Na secreta alquimia da alvorada,
            Do conjugar da música
            De todas as chegadas.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 23


Observemos o rio que nos tolhe
Os passos quando o tempo no seu leito
Deitamos com rigor.

E aguardemos seu lento passar como
Se a vida fosse o rio e nós a água
Entre margens retida.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 22


No voo circular das aves, lê o áugure
            Seu próprio destino.
            O que se lhe revela
            No dorso murmurante
Do azul, é o nascer do gesto de Átropo.

De súbito, o olhar cerra e o que deseja
            É que a caligrafia
            Suprema do poente,
            Na ardósia celeste,
Em seu olhar pulule em outra sorte.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 21 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 21


No alto empíreo, escuta Epimeteu
O epinício. Cântico que o vate
            Eleva sobre o campo
Onde a batalha atroz tinha cessado.

O que indaga no cântico, não é
A glorificação dos vencedores,
            Os heróicos momentos,
O pendão erguido. Era seus despojos:

O sangue derramado, a guerra, a fome,
A morte, a pestilência. A sua obra,
            Seu supremo legado.
O que nos deixou para sua glória.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 20 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 20


Não vos trago ambrosia, nem esta âmbula
            Acolhe vossos óleos.
Trago-vos poesia, meros versos
            Sussurrados por Zéfiro.

Nesta ungida ara os deixo. Não são meus,
            Pertencem a este tempo.
Somente os escrevi porque os vivi,
            Nada mais... nada mais.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 19


Não promete a semente ser a flor.
Entrega-se ao rigor do seu desígnio
            De demandar o sol,
            De ser corpo de luz.

Não prometas palavras que não tens,
Nem rios e nem versos não nascidos.
            Em cada boca nasce
            A voz que a pronuncia.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 18


Não queiramos tributo pelo gesto
Dado. Nada se pede a quem se dá.
            Não há maior tributo
Que aquele que, qual Ândrocles, advém
Quando a vida na arena se resume.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 17


Não me deram por alma ser poeta,
Artífice da pedra na palavra,
            Oculta pedra em templo
            No Olimpo do poema.

Deram-me a ganga, o verbo sufragado
No supremo consílio dos deuses.
            Esta mão e este olhar
            No cultivo das sílabas.

A ninguém se concede por ofício
A íntegra escrita, o verso lapidado.
            Não sangue, mas a veia,
            Dédalo a decifrar.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 16


Não condenais à morte, à escravatura,
Perpétua prisão. Cada palavra
            Bebe de sua fonte
            Suas próprias margens.

Pois não julgais, os deuses se resumem
À contemplação plácida e serena
            Do poema erigido
            No ritmo ao fado preso.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Posfácio a "Amar em Chão de Mar", de Dalila Moura Baião



Ao chegar a este texto, o leitor sabe de onde vem, que caminho trilhou, que imagens, sons colheu ao longo dos três ciclos que compõem esta nova obra de Dalila Moura Baião.

Sabe o sabor real, isto é: o que, de facto, conta; deste “Amar em Chão de Mar”, porque o livro, o que está contido em todas as suas páginas, mas, sobretudo, o que se encontra a descobrir entrelinhas, pertence-lhe.

Não é pertença secreta da poetisa que, ciosamente, o guardou, imaginemos, na tal gaveta de que tanto se fala, mesmo que essa gaveta de móvel antigo agora corresponda a uma página de internet ou a espaço de disco duro.

Após o que acima escrevi, tendo o privilégio de ler este livro antes de ser objecto que agora folheia, amiúde recorri ao “Varandas de Luar” procurando traços comuns como se demandasse um álbum fotográfico em busca de pontes que unam estas margens, estes dois poemários.

Dalila Moura Baião escreve-nos com alma, não só por nesta poetisa eu descobrir paixão, pelo acto de escrita em si e pela forma como nos traz retratos do real e os enforma em sentir, mas também pelo sentido de movimento, de pulsar na construção do verso e na estruturação e articulação da obra.

Neste volume encontram-se três movimentos, três instantes que se nos apresentam segmentados. 

No primeiro descobrimos um isomorfismo, mas liberto da convenção estruturalmente instituída para o soneto, ou não fossem “Poemas de mar, de vento e vida”, ou seja, tal como escreveu Fernando Pessoa: “Navegar é preciso / Viver não é preciso”. Precisão na apresentação, na via que há a percorrer, mas, porque essência dos três elementos referenciais deste ciclo, imprevista, plena de surpresa, a sua elaboração em verso.

No segundo movimento, a decifração possível do que é o nosso mundo íntimo, mesmo que, de quando em vez, se sinta que essa janela por onde se olha o mundo, recolhe em si mesma o olhar do próprio mundo. Trata-se de um puzzle, aparentemente caótico, pela profusão temática, mas que, no final, nos leva à proximidade do rosto do mundo que se vislumbra por essa janela, cabendo, portanto, ao leitor essa recolha de peças, quase diria traços e tonalidades, para esse erigir de rosto.

E, finalmente, o terceiro movimento, que nos é apresentado como retalhos, mas que são, na sua matriz, a verdadeira essência dos dois primeiros ciclos, isto é: neste último, pode o leitor descortinar referências, quer no plano afectivo, com especial relevo aos poemas inaugurais, onde a figura mãe predomina, quer no plano intelectual, que tornaram possível a feitura do poema, aquele que a poetisa escreveu e aquele outro, aquele que qualquer poeta procura.


Coimbra, 3 de Dezembro de 2010


in BAIÃO, Dalila Moura - "Amar em Chão de Mar". Temas Originais. 2010

de "Trinta mais uma odes" - 15


Joga-se ao Livre Arbítrio no Olimpo,
Riem os deuses, lançam os seus dados.
            Enquanto rodopiam,
            Uma estrela fenece
E outra pelos caminhos dos mortais
Pelo chão se projecta. Os deuses riem.
            É na dúvida do homem
            Que os deuses são felizes.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 14 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 14


Galaaz, é nas tuas mãos que guardo
            O poema perfeito
Do mundo. O que indaguei pelas palavras,
            Pelo ritmo dos homens,
Pelos gestos dos deuses que cifrados
            Se expõem ao olhar.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 13 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 13


Flores, lego-te flores, musa minha.
Em tuas mãos as deixo com rigor
            Como um verso que nasce
            Do ventre do poema.

As flores são perenes se esquecidas,
Mas eternas se em tuas mãos florirem
            Como verso que brota
            Na flor do teu sorriso.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 12


Eu sei que sou feliz nas calmas margens
Deste rio. O espectáculo do mundo
            Desliza em suas águas.
Ou no meu olhar prenhe pelas Graças,
Por Talia, Eufresine e Aglaia que
            Brincam em sua face.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 11


Escutemos o vento quando afaga
A casa onde deixámos nossa infância.
            Sintamos na epiderme
            Da cal, o suave ósculo
Do sol. Em cada imagem reflectida,
Repousemos o pássaro do sonho
            E aprendamos a sílaba
            Inaugural da vida.

Saibamos ser como este rio imenso
Que agora prova o sal do mar azul,
            Que amou o tempo, as margens,
            O fado que lhe deram.
Aos deuses, nada mais ouses pedir.
Também o sol, que tudo vê, resigna-se
            A contemplar o mundo
            No seu lento passar.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 10


Em tuas mãos, o cálamo, poeta,
É pedra, espada, ogiva que a memória
            Em ti acorda. Charrua,
Terra, semente. Em ti, poeta, o cálamo
É princípio e fim, é tua calema
            Por entre a voz dos tempos.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 9


Em teu gesto, Anfitrite, acorda a voz
Das Nereidas. Aedo, escuto o mar
            No ressoar das sílabas,
            No evolar de um acorde.
Como se neste barco a noite fosse
A mesma em que furtei ao anfitálamo
            O cativo poema
            A que fiquei cativo.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 8


Dizes-me a flor de maio, o sol de agosto,
Mas tudo no seu tempo tem o tempo
            Certo para saber
            O seu próprio tempo.

Pois nada os deuses deram por acaso.
Tudo pulula, tudo cresce, tudo
            Se rege no caminho
            Pelo tempo traçado.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 7 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 7


Desígnios cruéis traçam os deuses.
Plácidos, resignados, aos mortais
            Cumpre seguir caminho.
            Adir um passo mais.

Mas pior que adiar o inadiável,
É tê-lo por amor não seu. Ser Ácis
            No trilho de Polifemo,
            No olhar de Galateia.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 6 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 6


Demoro o meu olhar na antigualha.
O que outrora existiu, agora é sombra.
            Mas cada pedra canta,
            Eleva a sua voz.
Quem me dera escutá-la, conhecer
Os ritos que a regiam, que a faziam
            Ser qual ponto de luz
            Nos trilhos tecido
Com mestria de Aracne e que o passar
Do tempo, qual Atena por despeito,
            Seu corpo resumiu
            Nas mãos de uma arandela.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 5


Delos, berço de Artémis e Apolo,
Onde ninguém fenece, sequer nasce.
            Delos nos braços dóceis
            De Egeu, entre a partida
E a chegada talvez do sol, talvez.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 4


Cumpramos nosso fado, musa minha,
O que os deuses nos deram a cumprir,
Sem escolha e sem dúvidas
Do caminho a seguir.

Tal como esta semente, que aceitou
Que será flor e fruto o seu destino,
Saibamos, musa minha,
O nosso assim viver.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 3


Como é belo o poema quando nasce,
Álacre resultado da agonia,
            Corola que descobre
            A aglaia do momento
E se entrega a seus braços sem pudor.
Porque o poema é sol que se partilha.
            Não se guarda, nem cala
            A voz que o silencia.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 2


Com o tempo, aprendi a olhar o mundo
            Com olhos de menino
Como se cada instante revelasse
            O eclodir de um poema.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

de "Trinta mais uma odes" - 1



Bebe a cicuta, Sócrates, que o tempo
Julga, serenamente, quem condena,
            Do pensamento, o fruto.

in "Trinta mais uma odes" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 22 de novembro de 2014

Prefácio a "Galeria de Afectos", de Maria Antonieta Oliveira



O fio unificador do universo temático na escritura de Maria Antonieta Oliveira, que conheci sob o nickname de Avozita no sítio da Internet, Luso-Poemas, é, sem dúvida, o afecto, entendido este como o gesto que anuncia o afago, o estar presente no momento exacto, o sorriso que é casa aberta para o outro.

Este “Galeria de Afectos” é exactamente isso, um instante de instantes, uma digressão pela memória dos gestos, um Eu que, mesmo quando se descobre em solidão, procura em si mesmo a capacidade de indagar a janela que, como se soía dizer, se abriu algures quando a porta se fecha.

Trata-se de um ciclo onde, sobretudo, três outros ciclos confluem: poemas com destinatário; do foro amoroso; e do seu Alentejo.

Este movimento tríplice convoca-nos para a fruição das palavras vivas com que vai desenhando quase diria história em forma de verso.

Tal como a poetisa, “Abri a janela do mar / libertei-me de tudo” e, roubando o título a Alexandre O’Neill, “De ombro na ombreira” contemplei o nascimento de cada poema ao virar da página.

Fica portanto o convite: encontre e abra a sua “janela do mar” e entre nesta “Galeria de Afectos”.


30 de Janeiro de 2011


in OLIVEIRA, Maria Antonieta - "Galeria de Afectos". Temas Originais. 2011



quinta-feira, 20 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 20


dizem que perco tempo
sentado à beira deste rio
mas como se pode
aqui
perder tempo
se suave e doce é seu passar
e a vida nada mais é
do que este destino
de demandar a foz
sem outra condição

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 19


Conta uma a uma cada moeda. As
doze com que compraste essa figueira
onde do chão, por onde o pão germina,
tua fuga, pendente, desenhaste.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 18


No deserto das mãos, o gesto nasce
pródigo em criação. Gera do caos
as formas do poema, do leito onde
as palavras se deitam e comungam
a secreta matéria dos sonhos,
da memória. O breve dizer
da areia removida por José
Luís Borges mudando a face do
Egipto. Talvez quadra, simples, mas
profunda, como vale imenso, de
António Aleixo. Todas as palavras
como cacho em vindima aguardando a
hora de ser desejo, de ser arte.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 17


Na minha cidade há um poema em
cada viela, praça, rua, beco,
avenida, alameda. Em cada canto,
em cada olhar. Nas montras, nos reclamos
luminosos. Um verso explode nos
carros, nos autocarros, nos comboios.
Há um poema porque há vida.
Há gente que nas mãos traz o futuro,
traz o sonho, a esperança, o sentimento.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 16 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 16


A iluminada mão projecta a sombra,
Carlos Poças Falcão, in O Invisível
Simples. A sombra, como o verso, não
fica, à guisa de epígrafe, pendente,
isolada no topo de uma página.
Desce por entre as frestas do poema
e indaga a luz que nega. Traz seu nome
na esquina de uma sílaba esquecida
e, de súbito, surge entre a voz que
nomeia a iluminada mão. Regressa
ao centro do poema e seu corpo
com o corpo da luz funde em silêncio.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 15 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 15


a chuva morde os flancos da terra
suave e súbita
onde era sombra agora é corola
desperta à luz de uma sílaba

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 14


Aceso há um cigarro que ilumina
a noite por detrás de uma janela.
É estrela solitária ou cometa
que baila e brinca até sua extinção.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 13


Nada permanece. Abre o livro. O verso
ganha asas e renasce em tuas mãos.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 12


Na mesa do café, entre a bica e
uma amêndoa amarga, acende-se um
cigarro. A esferográfica arrisca o
fogo da poesia entre as notícias
do próprio jornal do dia. É triste
o poema, o poeta expõe não a obra,
o verso procurado entre o silêncio
e a solidão, mas sua foto tipo
passe, ridente, em página de necrologia.
Na mesa do café,
como cinzas, ficaram as palavras.
Que o vento as leve e traga noutro dia.
Hoje não, eu não quero poesia.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 11


Inclino a face. O lago responde e
acolhe a luz. Progride rumo ao ventre
do olhar e nele planta o desejo, o
esboço de uma máscara caindo.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 10


Sobre o tampo da mesa, um copo de
vinho, papel, cinzeiro, maço de
cigarros, um isqueiro e uma caneta.
A madeira, sob marcas, ocultava
outras paragens, gente circular
como o fundo da taça bebida. O
cinzeiro deformado, escondia ânsia,
solidão, uma espera prolongada
como ferida exposta. Puxei de um
cigarro. Olho em redor da taberna e
sinto como o poema anda na rua.
Anda dentro do olhar de homens, mulheres
e crianças. Habita nas mais simples
coisas. É ser que vive em cada recanto,
palavra, sonho, movimento.
Poema eternamente em construção.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 9 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 9


José Carlos Ary dos Santos, ao
ler-te observo a música do verbo,
da palavra artilhada, bomba, flor
pungente de amor, vida, de desejo.
Ler-te é uma viagem de demanda
de novas sensações e melodias,
acordes que fervilham e nos surgem
nítidos entre cada dobra do
poema. Mas ler-te é, também, sentir
o acordar na memória de imagens,
vozes: Fernando Tordo, Carlos do
Carmo, Simone de Oliveira. Ler-te
é saber de uma pátria de sombras,
pátria amordaçada, de um caminho,
do sol da poesia que alto brilha
e não cala, e não cala o canto, o sonho.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 8 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 8


Ao colo, uma criança dorme. A mãe
afaga-lhe o cabelo. O poeta abre
o saco da metáfora e sente a
fria e triste impotência de não
ter, por entre as palavras, uma imagem
solar que lhe descreva o brilho que
habita fundo no íntimo do olhar.
Recordo o terno afago, o doce gesto
de minha mãe. Seu rosto iluminado
enquanto me embalava para ir brincar
com o sono, para mergulhar
no sonho que em seu canto me promete.
De súbito, as palavras surgem. Trazem
o desenho do gesto, o esboço de
um sorriso, o calor da mão que tece
a candura da manta que me tapa
e que, serenamente, minha mãe
vai, quando me adormece, aconchegar.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 7


Recordo-me, era noite e cintilava
o poema na aresta do poente.
De longe, o vento traz o passar
de um comboio. Regresso ao corpo da
viagem. Há paisagens nas palavras,
searas que em espanto se revelam
no olhar que navega entre estrelas e
cometas. Mão que tece rumos na
memória. Era noite e o poema arde
no ventre das palavras ancestrais.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 6


No fim, será somente um ponto. Final
de um caminho. O que cruza esta fronteira,
recolhe entre mãos pó. Semente de
poema que em silêncio se gera.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 5


Escrevera na margem do rio o
meu nome como marca da partida.
Ao longe, o mar, espelho do sol, como
aguarela suspensa no olhar. Quadro
onde encontro o caminho, o meu caminho.
Embarco neste barco. Neste cais
deixo a última semente da saudade.
E vou. Procuro o mar. Há uma ilha e
um canto de sereias que me chama.
Indago nome e rosto, a queda das
máscaras, como um último poema,
criação derradeira do poeta.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 4


Há séculos de vozes pelas veias
de cada poema. Abrem suas asas
no esboço circular de cada voo
em torno da palavra inaugural.
Herdámos instrumentos, movimentos,
o despertar do olhar, o seu mistério,
a cadência, a música, o silêncio
habitado de todas as memórias.
Resta-nos o desígnio, o contemplar
sereno das cidades e dos campos,
dos homens e das obras fruto dos
seus gestos. Indagar pela raiz
desta árvore frondosa que nós somos.
E plantar, semear o verbo para
quem nasce e em cujas mãos o tempo
será de novo nado e redivivo.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 3


São singelas as coisas que me espantam,
que me seduzem. Pássaros em voo,
uma canção de Zeca Afonso, um só
poema de Alexandre O’Neill, um quadro
de Vieira da Silva. Sensações
que indagam o desejo de ser livre.
Cortar amarras. Ir até onde o
horizonte for fim, for limite,
o limite do espaço e do tempo,
ponto final do próprio poema.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 2 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 2


Sou como um rio. Trago em minhas águas
memória de alheias vozes como
se fossem afluentes do poema.
Embutidos retábulos no cerne
da madeira mais pura. Frutos
de pomares por onde o desejo é
brisa de aromas frescos e suaves.
Sou como um rio. Vou para o mar. Trago
nas águas o sonho de sonhar.
Arado que em silêncio engravida
a tez deste papel ensandecido.
Sou como um rio. Ensejo chegar ao
mar. Ser filho do tempo em que vivi
embarcar no poema e partilhar
palavra, sonho, vida, poema...

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 1 de novembro de 2014

Prefácio a "Matiz do Mundo", de Gabriela Pais



Matiz do Mundo, de Gabriela Pais, este mesmo livro que agora está consigo, é o convite, mas também o próprio acto, para a auscultação da música que o mundo contém e que cada vocábulo tenta reproduzir.

Mas vai para além disso, leva-nos para a contemplação do mundo, para a sua possível decifração através do espanto que em nós pode, se para isso estivermos disponíveis, despertar.

Cada fragmento que compõe este volume, quase diria, assume-se como uma pintura do instante, uma história que nos é revelada através da palavra poética.

Matiz do Mundo, na minha perspectiva, trata-se de uma autêntica galeria, organizada com uma harmonia sem mácula, que o formato idêntico de cada poema nos sugere.

Ao vaguearmos através desta verdadeira exposição, o nosso olhar transforma-se em luz branca, possibilitando assim a revelação de todas as tonalidades que a junção de palavras eruditas, quotidianas e regionais propicia.

Por último, um aspecto que me parece relevante: a forma como, por vezes infringindo as regras gramaticais, usa a pontuação para a descoberta da sonoridade.

Trata-se, portanto, de uma obra assumidamente artística, onde se vislumbram na sua construção vestígios oriundos das mais múltiplas expressões de arte.

Coimbra, 19 de Janeiro de 2011

in PAIS, Gabriela - "Matiz do Mundo". Temas Originais. 2011


de "Afluentes do poema" - 1


Regresso. Sinto o fogo da Biblioteca
de Alexandria ríspido nas
veias do poema. Há um verbo a conjugar.
Uma criança a correr entre
alamedas de espanto construindo
a memória. Nada a prende ao mundo.
Tudo é madeira virgem onde gravar
as sílabas do sonho. Pedra onde a
face se expõe ao vento impiedoso
dos tempos. Mas a lágrima surge e
cava no rosto artérias de dor.
E regresso ao meu novo ofício. À
arte de depurar sombras e cinzas.
Nada digo à criança. Talvez um
dia as cinzas revelem seus segredos.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 14


III PARTE

LISTEL

CASTELO DE MONTE-MAYOR

Acordai,
pedras,
que vos chamo.

Dizei-me
dos segredos e sonhos
das mãos que vos ergueram.

Dessa alta mirada,
de onde olhais para a lonjura,
falai-me
do curvado povo
nos arrozais,
do sereno
ofício do sol,
das lendas
que o Tempo,
em seu lento caminhar,
em vós guardou.

Acordai,
pedras,
que em breve partirei.

Levar-vos-ei comigo
como quem leva um verso
ou uma ave
no olhar.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

terça-feira, 14 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 13


Terceira Faixa Ondada - DIOGO DE AZAMBUJA

Quem o rio sente,
sonha o mar.

Cedo aprendeste
a soletrar
os ventos e a lonjura.

Talvez aqui,
no topo
desta Torre de Menagem,
com o olhar navegando
pelos dóceis campos
do Mondego.

Havia
no teu corpo
uma vela a enfunar
e um mor desejo a cumprir.

E rumaste para sul
com as aves
consortes do sol.

E ergueste na distância
o grito em pedra
da tua demanda.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 12


Segunda Faixa Ondada - O SEM NOME

Não contaram minha história.

Não houve rima
ou tempo
ou pena
ou tinta.

Trouxe nas mãos o ofício dos ventos,
da madeira navegante.

O pouco que era meu,
comigo foi.

Fui gente,
somente,
mas zarpei.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

domingo, 12 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 11


Primeira Faixa Ondada - FERNÃO MENDES PINTO

Nas mãos,
toma o próprio destino.

Há,
ao longe,
um mundo e outro mundo
se abre no olhar.

Viandante,
não de sandálias
por pó urdidas,
mas de arestas do sonho
a oiro traçadas.

Não de cajado
sob o peso da amargura,
mas de hirto ensejo
de demandar para além,
para lá da raiz
da própria distância.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

sábado, 11 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 10


Segunda Flor de Lis - MANUEL DE MACEDO

O olhar
é qual ave de rapina.

É um imenso rio
onde todas as cores
se encontram
e comungam
do mesmo ensejo.

Cada paleta traz
o sentido de um grito,
de um silêncio,
de um sonho,
uma memória.

O olhar cativo,
em fuga,
em fúria,
em febre ardendo à flor do branco.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 9


Primeira Flor de Lis - MANUEL JARDIM

Alva era a luz.

A tela,
a janela desperta para o mundo.

E as mãos,
essas,
eram as obreiras:

colhiam mel em silêncio.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 8


Terceira Torre - AFONSO DUARTE

Escuto os teus poemas
e sente-se no sangue,
que flui em teus versos,
a voz do teu povo.

O que se ama
porque dele brotámos.

E a palavra mãe.
A palavra filha.
A telha vã.

O aroma da terra
de rosas florindo
e as mãos levando
seus espinhos.

E a palavra como enxada,
sulcando a página,
fecundando cada verso
com os gestos.

Escuto
em teus poemas
o rumor do Mondego.

Repara como dorme em tuas mãos.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 7


Quina de Portugal - ANTÓNIO CORREIA DA FONSECA ANDRADE

De onde vem este rio imenso
onde meus olhos se descobrem?

Que asas de ouro
o fazem voar ao poente?

Que fogo é este
que lhe adoça a face?

De onde vem?
Por que águas?
Por que sal?

Indago a semente
deste fruto,
desta flor
qual nascente deste rio.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 6


Segunda Torre - FRANCISCO PINA E MELO

Havia a palavra
e a exacta medida
de cada verso.

Trazia nas mãos
todos os utensílios
e o fogo
germinando no olhar.

Cada palavra
era delicada,
do mais puro ouro.

Brilhava
qual metáfora solar,
filigrana
iluminado de dentro.

E cumpria
o seu supremo ofício
de ourives da poesia.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 5


II PARTE

ESCUDO

Primeira Torre - JORGE DE MONTEMOR

Nasce o poema,
a palavra,
a sementeira do verbo,
da música.

Lo deseo,
eres la palabra
susurrada
de todos los ríos.

Tal vez
la palabra amor.

Talvez
a palavra dor.

Talvez.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

domingo, 5 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 4


Quarta Torre - ANTÓNIO RODRIGUES CAMPOS

Não há futuro sem passado,
fruto sem semente,
poesia sem música.

Tudo seria terra árida,
vento agreste,
rio sem desejo
de ser mar.

Um povo sem memória,
é um povo
que se resigna
a perecer.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004.

sábado, 4 de outubro de 2014

Para mim

No dia do meu aniversário, deixo aqui um auto-retrato. Tem alguns anos, mas continua actual. Agradeço a Bocage a ideia.

AUTO-RETRATO

Magro, de olhos escuros, cara linda,
Que é do mundo o menino mais bonito,
Lhe disse a sua mãe, e diz ainda.
De resto resta a barba, e tudo dito.

Agora lá por dentro, na conduta,
Nessa coisa moral, nada a dizer,
Porque ave de rapina que labuta
Preocupa-se mais se tem comer.

Quanto ao amor, ai que lamechice!
Que fique na gaveta bem guardado,
Porque, desde a infância à velhice,
Só o homem, não o autor, o tem usado.

Eis, pois, Xavier Zarco, que sem treta
Fez-se em retrato em cauda de cometa.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 3


Terceira Torre - ESTHER DE CARVALHO

Quando o pano sobe
e a luz nasce,
é outro
que não eu
que vos surge
rente ao olhar.

Mesuro o ser
por gestos e palavras
e trago-vos as novas
de um mundo novo,
o vosso,
mas diverso.

in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 2


Segunda Torre - MOUROS

Vinham do sul
traziam na tez
a coloração do sol
e a mestria
de domar as águas.

Bebiam dos rios
as palavras
que semeavam
ao ritmo das estações.

Também aqui
por terra de Munt Malur,
pelos campos do Mondego,
cultivaram tempos
e memórias.

O seu legado,
escuta-o,
vem na voz do vento,
no murmurar da terra,
no sussurro das pedras.


in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Sobre “Fui... O que já não sou!”, de Paulo Themudo



Um livro é como uma casa. Antes de se entrar na casa, há que a descobrir. Existem várias formas para se chegar à casa: o acaso, através de indícios ou, mais comodamente, a exacta referência. Mas, independentemente da forma de a encontrar, a casa é, existe, assume-se como um dado físico, concreto, com as suas paredes, portas, janelas...

Sob o olhar, a casa revela-se, não só na sua condição material, mas como parte integrante de um lugar, talvez de um arruamento e com o seu próprio número de polícia.

A esta abstracção, poderemos atribuir-lhe o valor de um título. No caso em apreço: “Fui... O que já não sou!”. E este é o nome desta casa.

Utilizo a imagem da casa porque é o espaço referencial, o espaço da emoção, dos afectos, da família, dos amigos, mas, também, é o espaço da solidão e, sobretudo, é o nosso templo, espaço de reflexão, de meditação. No fundo, serve de refúgio, é o nosso canto. Talvez por isso, diga o poeta, num poema intitulado: “Eu...”, texto com que nos abre a porta desta casa, o seguinte:

“agarro o transpirar das janelas, escudos protectores das palavras”(1)

Ou seja: o espaço é habitado por palavras. Portanto, não será de estranhar que uma delas seja fulcral na leitura deste poemário. Esta é a palavra criança. Palavra que nos surge na exacta medida, ou seja: a sua repetição corresponde ao fragmento “Fui”, anunciando desta forma o fragmento “O que não sou”.

Em resumo, estando perante um livro composto por trinta e quatro poemas, essa referência deveria ocorrer dezassete vezes e, de facto, assim acontece. Repito o que escrevi no prefácio:

“feito de arte, criação humana”(2)

Criança, para além do que intuitivamente nos é apresentado, traz-nos a ideia da esperança, a capacidade do sonho, da criação. Por isso, diz o poeta:  

“Que eu não seria nada do que sou se não fossem os sonhos”(3)

Ou seja, a criança como o princípio, o elemento matricial do homem. No entanto, mesmo quando alude ao sonho, é necessário, urgente reforçar essa presença, e isso acontece no poema intitulado sugestivamente “Escrevo o sonho”, referindo:

“Não desisto de ti
Que és nome silencioso
Que madruga e veste
As minhas mãos”(4)

E porque o sonho, a criança em acção, se pode única e somente justificar perante o outro, o leitor, pelos actos, pela liberdade, o poeta, no mesmo poema, profere:

“Construí um rio de palavras
Para adormecer nas mãos de alguém”(5)

Esta é uma importante referência. Chamo pois a atenção a este poema. É, na minha leitura, de suprema relevância para o entendimento deste ciclo poético. No fundo, talvez seja o desvelar da própria essência da sua visão de arte poética: a consciência de que tudo o que se escreve só tem validade a partir do instante em que o leitor se apropria do poema. Das palavras que, numa imagem de serenidade, se recolhem nas mãos do leitor, ou, utilizando as palavras do poeta, nas mãos de alguém. Essa partilha, dá-se porque, e assim diz Paulo Themudo: 

“Eu fui feito de tudo
Caí, debrucei-me nas ondas do mar”(6)

E só no mar é possível exercer a navegação, partir em busca de quem se sabe ou presume existir num qualquer porto, num qualquer cais, talvez mesmo entre escombros, um náufrago que demande a palavra poética. 

No entanto, o poeta sabe que o leitor necessita dos artefactos essenciais para  que a sua descodificação seja possível, daí afirmar:

“A luz maravilha-se com o sabor de algumas palavras
As páginas trémulas libertam-se na voz madura
Esculpo a sala onde me entrego
Pinto as paredes com um sorriso”(7)

Esta é a magia da Poesia, a sua capacidade de metamorfose para o ofício de partilha entre o poeta e o leitor. Desta forma, confessa o poeta:

“Quase em silêncio entrego o nome
Nas páginas pálidas de papel
Lugar que deu lugar ao sonho”(8)

Reparem que o escritor repete a palavra lugar, reforçando desta forma a ideia da transferência quase diria metempsicótica nesse lugar, a casa, onde a criança se assume na plenitude porque, escreve Paulo Themudo, 

“As palavras são agora, alma, estrada”(9)

Há pois que caminhar. E o poeta toma como sua essa lição, mencionando: 

“A estrada é a mesma
Parece que se estendeu”(10)

Mas o caminho de um poeta, como antes já insinuei, é feito de palavras, palavras que habitam no coração da casa. Elas são a sua razão de existir. É através delas que pode erguer a sua obra, ou seja: a matriz do objecto que oferece ao leitor. Por esse motivo, a dado momento, menciona:

“Os meus olhos já te dizem tanto
As minhas mãos já te entregam tanto
Só preciso das palavras...”(11)

Mas não antes, como um pouco mais à frente refere, de transformá-las na sua oficina, porque o labor do poeta reside na configuração de novos sentidos para a 

matéria que utiliza, como o próprio refere:

“Invento no sabor de uma palavra
O significado de começar”(12)

Porque é um ciclo em que se regressa sempre ao ponto inicial, à criança, à palavra criança e a toda a carga evocativa que esta palavra possui, dizendo:

“Qualquer distante encanto
Faria sentido...”(13)

E esse encanto surge, mesmo quando é a ausência das coisas mais simples o quadro onde esse encanto se movimenta. 

“A criança corre, sorrindo,
A mesa vazia, mas vai sorrindo,
A lareira apagada, mas vai sorrindo,
A chuva molhando, mas vai, dormindo.”(14)

Mas o encanto persiste, porque a criança existe e exige, tornando este numa condição essencial, mesmo quando é nada o que se presume. Ele resiste à devastação, à erosão temporal desde que se saiba ou queira descortiná-lo. Nas palavras do poeta, esta é a sua imagem:

“Da pequena janela
Surge um braço de luz
O nascer de uma estrela, era noite, aguarela”(15)

E a casa vista de fora mesura-se como refúgio

“Refúgio é o corpo que dormia”(16)

Na casa, o corpo que dorme é o palco do sonho. Abre em si as portas da imaginação do homem. Aí, ele sente-se pleno, consciente do que nesse lugar mágico for capaz de descobrir, de decifrar, fá-lo-á superar-se, mesmo que, ao acordar, questione: 

“Que silêncio te esconde
A morada perdida”(17)

Porque só através de um incessante questionamento sobre todas as coisas, mesmo que provoque angústia a resposta sempre provisória, ele pode avançar, caminhar, embora tendo essa provisória certeza do que foi, do que já não é, mas sabendo sempre que:

“Para trás o vazio
Agora, sou vida!”(18)

Direi mais: é futuro, capacidade de sonho porque desoculta a criança em si, redescoberta e reconquistada.



NOTAS:
(1) THEMUDO, Paulo – “Fui... o que já não sou!...”. Edium Editores. São Mamede de Infesta. 2008. P. 7
(2) ZARCO, Xavier – “Prefácio” in THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 3
(3) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 8
(4) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 17
(5) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 17
(6) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 19
(7) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 22
(8) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 23
(9) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 27
(10) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 41
(11) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 43
(12) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 45
(13) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 50
(14) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 56
(15) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 56
(16) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 72
(17) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 76
(18) THEMUDO, Paulo – Ob. Cit.. P. 80

de "Monte Maior sobre o Mondego" - 1


 


I PARTE

COROA

Primeira Torre – ABADE JOÃO

Pela nobreza,
não lutara,
mas pela dor de nada ter.

Só este silêncio informe
de um preso grito
numa imagem
repetidamente exposta
de amado corpo degolado.

E a mourama aqui tão perto,
cercando
asfixiando o próprio poema.

E o vento
calando na pedra
a canção da vitória.

Ouve, a morte ri,
não vem do rio,
desce das muralhas.

Escuta,
não fora a esperança
que fenecera,
era o medo a germinar.


in "Monte Maior sobre o Mondego" (e-book, ArcosOnline, Arcos de Valdevez, Portugal, 2006; Temas Originais, Coimbra, Portugal, 2010) - Menção Honrosa (Poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte - 2004. 

sábado, 20 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 95 a 100


VENTO

ouve
habita nas ramagens
a voz do vento

VER-TE PASSAR

Ver-te passar
é saber como é breve o tempo
e perene o desejo

VIAGEM

Nos cabelos de um cometa
sonho a viagem
vou de partida

VIAJANTE

Entre o pó e o homem
há uma sandália
de um viajante

VIANDANTE

Como bagagem
levo a memória
de um caminho a percorrer.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 91 a 95


SIMURGH

Entre o céu e a terra,
una é a essência
porque una é a sua matriz.

SOMBRA

A sombra salta o muro. Esconde-se
do sol ou aguarda por ti
para te acompanhar.

SONHO

No secreto gesto,
que as mãos do desejo despertam,
abre-se o trilho do sonho.

TEMPLO

corpo exposto
à semente fecundante
do silêncio

VELEIRO

O mar azul, súbito branco
nos flancos da areia ou poema,
veleiro em papel no horizonte.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 86 a 90


SEREIA

Entoa a canção do mar.
Serenamente me recolho
em seu secreto cântico.

SERPENTE

Entre a maçã e a boca
o gesto
que se dissolve em desejo.

SILÊNCIO

liberto
o silêncio pesa
a voz que o pronuncia

SILÊNCIO, outro

Somente o rumor das águas
e o breve dizer das aves
para romper o hímen do silêncio.

SÍMBOLO

Na mão profunda do ser
reside o símbolo: o que existe
e os sentidos alcançam.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 81 a 85


REPARA

Murmura o sol sobre a planura.
Repara como urde fio a fio
da sombra e da luz o destino.

SAUDADE

Ave que esboça o regresso
no soturno céu
da partida.

SEARA

Esta é a seara onde
colhes o fruto como verso
do ventre de uma escrinha.

SEMENTE

Das mãos se desprende o gesto:
a semente que deseja
ser flor, ser fruto.

SEMENTEIRA

Consumo as palavras,
os sentidos das palavras,
no semear do poema.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 76 a 80


PRESENÇA

habita alguém
na face do poema
no acorde de cada sílaba?

QUADRO

Ao centro da branca parede
emoldurei um sonho, uma janela
com vista para o desejo.

RACHMANINOV

O mundo pára
enquanto escuto Rachmaninov.
É outono e as folhas pairam.

REGRESSO

Como o barco
ceifei nas ondas o desejo
de regressar.

REGRESSO, outro

teço o regresso
nova partida
num ponto de penélope

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 71 a 75


PARTIDA

De súbito, trouxeste
a meus olhos
dezembro em pleno agosto.

PASTOR

Com ágolo e flauta, o pastor
que guardava as palavras do vento
pelas estrofes do poema.

PAZ FÁTUA

rente à terra
um ramo de oliveira
aguarda a pomba prometida

POEMA

O poema não é as palavras,
voz em silêncio, é esta pedra
que o olhar, em espanto, cinzela.

POMPEIA

Sob o tempo, o silêncio
dos amantes
nas cinzas esculpido.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 14 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 65 a 70


OFÍCIO

As pedras ofendem o vento.
Este trabalha. Paciente,
espera o desenho e parte.

OLEIRO

Entre a mão e o gesto
o despertar do corpo
ou do silêncio.

OMEGA

Águas calmas do poente,
por que me chamas
se para ti navego?

ORAÇÃO

Bendito seja o fruto de vossos
lábios de mel, onde a minha sede
se consome, amén.

OUTONO

folha a folha
pela mão do vento
se desenha o outono

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 13 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 61 a 65


NÁUFRAGO

O poeta é náufrago
por entre a memória
em construção

NOCTURNO

no uivo da noite
o cão
de breu se veste

NOVILÚNIO

Habito o sonho e sinto
a leveza do voo lunar
neste tempo novilúnio.

OCASO

Por acaso, o ocaso nasce
no limite do mar
ou na raiz do teu olhar?

OFERENDA

Vou, como o Eugénio de Andrade,
com as aves. Vou rente aos campos
colher-te, mãe, uma flor, um verso.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 56 a 60


LUA

Majestosa, regente do mênstruo
e do desejo, a lua
entre nuvens oculta.

MÃO

Desperta do silêncio
a respiração contida
na pétala de uma pedra

MÁSCARA

Máscara é a nudez
do homem definida
com a sua queda.

MEDO

Sei, não partiste, dormes a meu lado,
mas consumo cada dia
como se fosse, de nós, o último.

MUSA

pergunto-me do verbo
do nascer frágil do poema
e só tua face almejo

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 51 a 55


JOB

Sobre a pedra, aguardo
que o destino desça
este caminho ao meu encontro.

KY-LIN

De súbito, habita
o poema. Depois, o olhar.
Teu ventre iluminado.

LAREIRA

Ouço crepitar.
Da infância, a voz renasce
no lento fogo da memória.

LETES

Pétala a pétala, esvai-se
a memória nas margens
deste rio que atravesso.

LIBERDADE

Num sonho de Espártaco, avanço
com asas de Ícaro pelos céus
num fio de luz, de ilusão.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 46 a 50


ÍCARO

Ícaro não vem.
Sem asas, resignara-se
a voar.

ILHA

Um desenho azul
de aves, a ilha, em voo
circular no horizonte.

INTERAMNE

Entre águas, escuta
o insinuante nascer
do rumor do silêncio.

INTERMEZZO

Entre astros,
estrelas cintilantes,
o pó.

INTERMÚNDIO

Entre mundos, a solidão
de não estar aqui
ou em lado algum.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 41 a 45


GATO

Sobre a ombreira do tempo,
ou num quadro de Foujita,
dorme o gato da infância.

GERMINAÇÃO

ponto final
parágrafo
o insano ofício de escrever

GESTO

Na lentidão do seu gesto
ergue-se do caos
o próprio corpo do oleiro.

GRILHÕES

Não voes para lá do olhar,
só podes desejar
o que os sentidos te ofertam.

GRITO

A mão cinzela a pedra
gera a boca
que silencia o grito

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 36 a 40


ESPELHO

onde a face de narciso
se recolhe, oculta
a palavra se revela.

ESTÁTUA AO POETA DESCONHECIDO

repousam as pombas nos ombros
do poeta ou da noite
que cai dentro do próprio poema?

FILIGRANA

entrelaçados
na contemplação da jóia
os cabelos do sol

FONTE

Do ventre da pedra,
o segredo da água
sedenta de luz.

FRAGILIDADE

frágeis são as manhãs
as pétalas do orvalho
anunciando a despedida

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 7 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 31 a 35


ESCADA

Desejo de ascese
degrau a degrau
da sombra à luz.

ESCREVO

Escrevo este aflito
não dizer
por que grito.

ESCRIBA

Sob o bailado da trémula
luz da vela, copia, letra a letra,
a letra da memória futura.

ESCULCA

Chove, mas persiste. O mundo
gira, mas fica. Guarda o silêncio
ou talvez um sonho.

ESCULTOR

No olhar, não pedra, mas a
forma, o movimento circular
do cinzel que gera o corpo.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 6 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 26 a 30


DESEJO OCULTO

Nascem flores ou verbos
imagens de um movimento
para um desejo oculto

DESERTO

Onde o nada é luz
e a distância
caminho e contemplação.

DESTINO

O que Diana me fez, sou.
Cumpro meu fado de Actéon
só para ter beleza em meus olhos.

DÚVIDA

Onde cabe um sonho
se tudo é o limite e o nada
inexistente?

ENFORCADO

Aqui jaz o enforcado
o que negou o chão
que o aguardou e o acolheu.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 21 a 25


CIFRA

nomeio uma ave ou um rio
mas quero dizer voo e sal
ou o homem e seu desígnio

CORRIXO

Há um canto, um poema,
a memória de um verso
iluminado na voz do tempo.

CRIAÇÃO

o gesto nasce
no respirar
da pedra

DECLARAÇÃO

Declaro:
todos os versos são inúteis
sem que o olhar os ilumine.

DERVISH

a arte de comunicar
a perfeita elipse
o homem como palavra

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 16 a 20


CAMPONÊS

Antes do início dos tempos
já o camponês arava
a memória em silêncio.

CANDELABRO

Bailam as chamas:
conjugam a sua extinção
nos lábios do vento.

CANTO

No dorso da água, a silhueta
de uma voz, canto de sereia
que me prende à viagem.

CEIFEIRA

Ao rigor
da jorna, a dor
curvada.

CICLO

O criador cria
a coisa criada
que cria o criador?

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 11 a 15


AVE

Serenamente, se recolhe.
Indaga a fórmula do espanto
incendiando o voo.

BARCO

Há um verso à deriva
na palavra
azul do mar.

BULÍCIO

No bulício
da cidade, o que faço?
Planto ruas na memória.

CÁLAMO

onde a metáfora brilha
entre os dedos
na floração das palavras

CAMINHO

Sigo o caminho do poente
vou com o sol e as águas
provar do sal o silêncio

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 2 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 6 a 10


ÂNSIA

alado corpo
na herança
das palavras

ARA

Oculto em teu corpo
há um rumor habitado
nas veias do silêncio

ARTE

nasce o gesto
a mão mergulha
na água do saber

ARTÍFICE

Entre dedos, o fumo de um cigarro.
Consumo o tempo que me resta
de artífice de memórias.

AUSÊNCIA

do barco resta a espuma
moldada pela proa
e o vento de fugida

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sobre “O dia em que te recordei”, de Rita Cipriano




Como Jacques de La Palisse, direi o seguinte: Escreve-se porque se tem memória, mas escreve-se para preservar essa mesma memória. Neste jogo em que a memória surge como princípio e fim, e a escrita, quer na sua vertente criativa, quer na sua vertente de usufruto, nos aparece como meio, é onde esquadro esta obra da autoria de Rita Cipriano.

Nela há uma digressão, quase diria sob a égide da filha de Urano e Gaia, a titânide Mnemosine, que é, segundo a rica mitologia helénica, a personificação da memória. 

Mas é algo mais do que essa personificação. Mnemosine é a mãe, sendo Zeus o pai, das nove musas, aquelas que inspiraram os artistas e, também, os astrónomos e os filósofos.

Digo isto porque nesta obra há a presença constante da memória, quer declarativa (episódica e semântica) quer inclusive a não declarativa.

Assim, por este livro encontramos vestígios da recolha, do guardar e sobretudo, naturalmente, do evocar. 

Ou não fosse a memória o utensílio mais precioso para o conhecimento.

Talvez por isso, porque é base do conhecer, Rita Cipriano inicie este seu livro afirmando: 

“Gostava de conseguir escrever-te tudo o que escrevo e saber dizer-te o que te digo de outra forma”. (1)

A escrita, tal como a memória, evolui, constrói-se. É um processo. Mas este tem como intuito, tal como conclui a autora: 

“escrever todas as coisas bonitas que esqueço e não te esquecer nunca.”(2)

Há portanto a necessidade do registo, o tal preservar que há pouco referi.

Mas não é só a razão, ou a tal componente declarativa, a pesar nesta digressão que a autora faz neste dia, o dia, não um dia. Ela move-se, quase diria intuitivamente, como se fruto da memória não declarativa se tratasse, erguendo os escombros que a ausência semeou, onde, tal como escreve:

“querer era esconder-te aqui, preso ao peito e ao passado que agora devora”(3)

e tudo porque: 

“trazer-te era senão o vazio com que te encontrei”.(4)

É portanto, naturalmente na minha leitura, a presença de algo, quase diria, subconsciente. Algo que acordou porque foi necessário utilizá-lo. Em ambos os casos citados surge-nos como mecanismos de catarse. 

Se no primeiro é a dor presente, uma ferida (passado que agora devora), no segundo é uma espécie de readormecimento, uma cicatriz, sob a forma de vazio.

Mas há um perigo no reavivar da memória: há que reviver intimamente cada instante reanimado e mesmo que neste se operem transformações, deste não escapamos, tomando de novo consciência, como refere Rita Cipriano:

“Enganados, pensamos que deixámos o único lugar conhecido.”(5)

Comecei afirmando que “Escreve-se porque se tem memória, mas escreve-se para preservar essa mesma memória”. No entanto, Rita Cipriano traz-nos também o oposto, o olvido, melhor: o supremo olvido, a morte.

A morte explícita e implicitamente acompanha-nos por todo o livro. Vem, quase diria, ao lado da memória. Ambas partilham da respiração, da cadência com que a autora elaborou esta narrativa, melhor este poema.

Diz-nos que 

“Conhecer uma cidade é conhecer-lhe a morte”(6) 

(torna-a portanto um acto de indagação) 

ou refere 

“A tragédia das coisas nasce da memória das coisas poucas”(7)

dando como exemplo imediato 

“da vista da casa para o cemitério”(8)

(algo mais concreto, embora aqui como aspecto de associação) 

ou como algo sentido, vivenciado como

“faço os dias evaporarem como fumo”(9)

(a ideia de morte em vida) porque, tal como nos diz, 

“só para a morte existe tempo”(10)

até a uma espécie de esperança em que a morte se torna início de um novo ciclo, de uma nova construção de memória quando escreve: 

“até que o meu mundo acabe, a história termine, dando lugar ao que nunca conheci”.(11)

E digo esperança apesar de a autora constatar que tudo foi porque: 

“ceguei cedo, ao que nunca cheguei porque encurtei o caminho, às flores e às cartas que nunca recebi porque as arranquei todas”(12),

mas o certo, certo é que no fim de tudo, como escreve Rita Cipriano:

“Sobras tu”(13).


NOTAS:
(1) CIPRIANO, Rita – “O dia em que te recordei”. Temas Originais. Coimbra. P. 7
(2) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 7
(3) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 13
(4) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 14
(5) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 17
(6) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 11
(7) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 25
(8) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 25
(9) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 32
(10) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 34
(11) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 34
(12) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 34
(13) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 35