sábado, 9 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 9.º Ciclo


IX

falar para a lua 
pelas janelas da noite 

Xanana Gusmão

1.

enumero as palavras colhidas
nos riachos da memória
e sinto a fogueira
acesa sobre a pele

há estrelas
cintilam nas janelas do poente

em breve
a noite abrirá
as suas portadas
para revelar o breu

2.

talvez a lua saiba
por que lábios
se desenha
a palavra sede
no ventre das marés

3.

trago as armas
sílabas que se ocultam
na dobra das estrofes

como um sereno arado
que sulca as vias
para uma safra de assombro

4.

a terra reclama e acolhe
o próprio fruto

não há claro ou escuro

tudo é parte de um êmbolo
em constante movimento

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

sexta-feira, 8 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 8.º Ciclo


VIII

As palavras do nosso dia
são palavras simples
claras como a água do regato

Alda Espírito Santo

1. 

no côncavo de um verso
a água repousa
serena

aguarda pela sede de uma sílaba
de passagem

2.

um só acorde acordaria
o espanto da noite

uma ave que cruzasse as mãos no erguer
da casa

ou um filho que viesse
dobrar o horizonte
onde o olhar do pai
repousasse

3.

porque é simples a palavra
com que se molda o dia
e frágil o sentido
das coisas mais belas

um pão nas mãos da fome
um ribeiro na boca da sede
uma ilha no olhar de um náufrago

por que feres os passos
e traças a sangue
a via do poema

4.

rendo-me ao caminho
teço o verso que me falta

vem do segredo da terra
da música das águas

das simples palavras
com que amasso o pão

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

quinta-feira, 7 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 7.º Ciclo


VII

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.

Herberto Helder

1.

foram as mãos regidas pelo olhar
que atearam na voz
o fogo
que nomeara
a primeira das manhãs

2.

o orvalho desenhara uma cortina
sobre a ampla
janela da alvorada

descia pelas fímbrias de um gesto
como um homem que contempla
o brotar de um novo dia

3.

reside o poema
naquele breve escasso
vislumbre
como uma janela
que se abre simples porque plena
para a morte

4.

e um homem corre
rio enfim liberto
das margens
para sorver do sal
os lábios da lua
o ventre das marés

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

quarta-feira, 6 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 6.º Ciclo


VI

Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.

José Craveirinha

1.

guardo os gestos os nomes
os utensílios

trago-os na algibeira

são cinzas que as mãos remexem
restos
desta imensa fogueira que é a vida

2.

escuto as sombras
que se arrastam pelo pó

ardem
no mistério das horas
que virão

3.

nada em mim é efémero
tudo permanece
rente à pele

queima
com os passos dados
na invenção do meu próprio caminho

4.

sou filho fruto desta árvore
que se entrega
sem rancor
aos lábios do fogo

meu destino é arder
aprender
a língua secreta das sementes
que em cinza em mim germina

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

terça-feira, 5 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 5.º Ciclo


V

Canto as mãos que foram escravas
nas galés

Julião Soares Sousa

1.

aos vindouros
deixo as anotações deste meu tempo
e do tempo
que me moldou

vestígios
da minha memória

porque é a única
a verdadeira
herança que importa deixar

2.

habita na minha voz
o arrastar das correntes
o rumor da sanzala

mas canto
canto as aves o mar
com a música da terra
onde deixei o meu olhar

3.

e canto as lágrimas
punhais cravados na face
do meu povo

e canto a esperança
o riso das crianças
do meu povo

4.

conheço o silêncio
das horas amargas

as mãos rentes à face
ocultando o olhar

mas sei também das sílabas
que em música se erguem das cinzas
no orgulho de resistir

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 4.º Ciclo


IV

Que as mans collan cinza
das sementes do ar

Xavier Seoane 

1.

ardem as mãos na demanda
julgada impossível
de colher nas cinzas
de uma pompeia projectada

mas sonham as mãos
o oculto corpo que se revela
na informe face do silêncio

2. 

porque há um barco
na deriva do mar

remos
na luta das correntes

mãos
entregues a uma voz
que só a terra sente

3.

e há uma pedra
qual muralha em redor do desejo
que de súbito tomba
sob a persistência
do vento

4.

colhem-se cinzas das sementes
do ar

palavras que acordam na voz
como um grito

ou um poema

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

domingo, 3 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 3.º Ciclo


III

As rochas gritaram árvores no peito das crianças

Corsino Fortes

1.

sabia de um cinzel
distante
que partira qual ulisses
para escrever o seu regresso
com a caligrafia
exacta de um grito

2.

um dia aprendera o valor
das palavras puras
e plenas
do voo das aves
no esboço de uma ilha

3.

há uma jangada
na descoberta da voz

um grito
nado na boca das amarras

4.

aproximou-se
sentindo a respiração
das rochas
rente aos pulmões do mar
onde uma criança brota
das árvores de espuma
que se recolhem
junto aos pés do areal

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

sábado, 2 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - 2.º Ciclo


II

O mundo é grande e cabe 
nesta janela sobre o mar. 

Carlos Drummond de Andrade

1.

o mundo é como esta árvore frondosa
que se ergue altiva frente à casa
da minha infância

mesmo distante
ainda lhe descubro
a fragrância dos frutos

e recordo a sua sombra
onde adormecia o sol
nas tardes de estio

2.

talvez a árvore seja só imagem
retrato incrustado
nas paredes da minha memória

mas a árvore existe
ainda reside no olhar
que habita a janela da casa

3.

aprendi
com o passar dos dias
que as mãos vão para além
do que entre elas possuem

mergulham
no próprio mistério do ocaso
como parteira
que no breu procura
o que a luz deseja

4.

e o mar
testemunha de aventuras
de arquipélagos
que só os sonhos sabem da existência
mansamente
se recolhe no ventre de um búzio

aí diz que o mundo todo
habita nesta janela
onde a criança esculpe o próprio o espanto

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

de "Nove ciclos para um poema" - epígrafe e 1.º Ciclo

 


Minha pátria é a língua portuguesa

Bernardo Soares


I

mereço o meu pedaço de chão.

Agostinho Neto

1.

não há palavras proibidas
todos os sons são livres de voar

2.

ao longo dos anos
semeei versos
como passos no caminho
que chamei de meu

alguns ainda os trago comigo
são o meu legado
o meu quinhão

meu naco de chão

3.

um dia colherei da primavera
as fragrâncias dos versos
mais subtis

como uma folha em voo
no pico do meu outono

neste chão que conquistei

4.

mereço este meu chão
esta palavra
pedra erguida que afronta o medo o mar
que teima em convocar
tambores
de ritos ancestrais
de aras onde o cordeiro se entregava
ao gume do silêncio

mereço este meu chão esta palavra
este meu pomo de liberdade

in "Nove ciclos para um poema" (edium editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio Literário da Lusofonia - 2007, organizado pela Câmara Municipal de Bragança