sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

de "In Memoriam de John Lee Hooker" - 4

Por vezes a máscara
Um nome encontrado
Na forja dos tempos

Mas sempre o rosto
O gesto único
E autêntico
Se sobreponha

Tombando a máscara
Ao mistério nocturno

Ao encanto
E deslumbramento do blues

in "In Memoriam de John Lee Hooker" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

de "In Memoriam de John Lee Hooker" - 3

Do fundo surgia a voz
Vinha do ventre da memória
De um secreto recanto
Onde o sonho germina e indaga o sol
Como se quebrasse
Os grilhões da escuridão
Ensaiando o voo

A voz surgindo como ave
Rumo ao horizonte

in "In Memoriam de John Lee Hooker" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

de "In Memoriam de John Lee Hooker" - 2

Se sangue
Corresse em tuas veias
Seria música
Seria blues

Esta seiva fervilhando
Iluminando a lareira
Que surgia em teu olhar
Quando o ritmo
Trepava
Pelas arestas do cosmos
Ao coração das galáxias

in "In Memoriam de John Lee Hooker" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

de "In Memoriam de John Lee Hooker" - 1



Foi em Santa Rosa
Que os últimos acordes partilhaste
Com o mundo

Havia
No dedilhar dos bordões
A marca exacta das notas
Que evolavam da guitarra

A magia da cópula desperta
No deslizar do trasto

O desbravar de um orgasmo
Feito de música
Acorde a acorde reatado

in "In Memoriam de John Lee Hooker" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

In Memoriam - Júlio Saraiva

Há um ano, o poeta Júlio Saraiva deixou-nos. Na altura, melhor, um dia após, escrevi o poema que abaixo vos deixo. Uma pequena homenagem a um excelente poeta.


Carta a Júlio Saraiva, in memoriam


camarada soube ontem da partida
de que te foste embora sem aviso
alguém me disse ver-te dentro de um
dos versos do tiago veiga “as
grandes nuvens cingiam-lhe a cintura”
mas não te imaginei sendo qual pássaro
preso às nuvens sequer pousado em ramos
puta de vida ó júlio ser poeta
que nada é e no entanto tudo abarca
não se é pássaro e voa-se mais alto
não se é verme mas sabe-se da terra
puta de vida ó júlio embarcar na
barca e cruzar o letes diz-me coisas
que isto de te ires embora sem avisar
sem ao menos beber um pró caminho
é lixado mas deixa lá que a malta
um destes dias vê-se por aí

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Sobre "Bolsa de Valores", de Domingos da Mota



Corria o ano de dois mil e dez quando Domingos da Mota nos faz chegar, através da editora Temas Originais, a obra: “Bolsa de Valores e outros poemas”.

Se não fosse pela imagem de capa ou pela inserção de “e outros poemas” muito provavelmente o livro figuraria nos escaparates ou não fosse a Bolsa de Valores um tópico cada vez mais actual e presente no nosso dia-a-dia. São cotações para aqui e para acolá.

Mas não, não se trata de um livro que nos traz o desvelar desses valores, mas, de facto, de um livro de poesia. Pessoalmente, ainda bem que assim é.

No entanto, este livro, aparentemente dividido em duas parcelas, permite as mais díspares leituras o que só lhe acrescenta valor, melhor: cotação em bolsa.

Como tal, aquela que aqui vos deixo, só deve valer para mim, mas, naturalmente, espero que em vós, se é que uma leitura diga mais do que o que vale: uma leitura; permita que este livro, pelas vossas próprias leituras, mereça aquilo que eu considero um destino digno de um livro: rasgado porque mau ou gasto porque bom, isto é: que haja uma boa reflexão em torno deste; que não caia nas malhas da indiferença.

Já conclui múltiplas apresentações assim. Agora assim começo este curto texto e faço-o porque este volume é um desafio, um desafio que inicia com uma das tais questões fulcrais: “o que é um nome?”, como se nos informasse a frio que há uma identidade a indagar e essa é a nossa própria identidade, a essência ontológica.

Só depois de um conjunto de interrogações é que Domingos da Mota nos diz que, afinal, há um livro à nossa espera, mas antes diz-nos de uma pedra, de uma madeira, de um pedaço de terra, sob a forma de um poema, onde as palavras se gravaram numa caligrafia que urge acordar.

E só há uma forma de entrar num livro. Há que descobrir a chave, mesmo que não seja a chave, mas uma chave, que seja nossa, para poder, posteriormente decifrar imagens.

Há portanto que escutar, apreendendo uma espécie de desejo, mesmo que fragmentado por nós, o que diz o poeta, e cito, fragmentado:

“Um poema tomara: e que fosse
À raiz das raízes ou mais alto
(...)
que fosse ao coração do próprio ser” (1)

Isto é: buscar um ideário de Beleza, não do Amor que se faz, como adiante se verá, e os poemas subsequentes podem induzir, mas a verdadeira face do Amor, o que é, independentemente do tempo, mas dependente de quem o pode sentir ou meditar, aproximando-se do mundo, não só como conceito, mas, também, como algo que pode ser, sempre por aproximação, experienciado.

Ou como diz o poeta:

“O amor permanece enquanto houver
Sede e fome entre o homem e a mulher” (2)

E a poesia, não só como expressão privilegiada de arte, mas como portadora do que é o mundo, pode interpelar o homem e a mulher a despertarem em si a tal fome e a tal sede.

Domingos da Mota traz-nos um manual sob a forma de valores que há a licitar, mas que nos conduzem, não só ao que dialogando com a pintura menciona, e cito:

“Ao peso imponderável da beleza” (3)

mas, pela proximidade às coisas nos ensina a exigir, e volto a citar:

“Que os espelhos devassem o desgaste
E foquem a nudez a meia haste” (4)

Aí os valores, talvez em dúvida pelo método, entregar-se-ão aos domínios de uma outra ciência, como se, tal como refere o poeta:

“Sem a lei da mecânica quântica
Irrompe a incerteza na semântica” (5)

No entanto, note-se que o poema, titulado como “Princípio da Incerteza”, de onde se extraí este dístico, aliás dístico final de um, dos múltiplos, sonetos shakespearianos, que nos remete para Heisenberg, mas isso é outra conversa, ou talvez não, precede o poema que titula o livro, onde o poeta conclui:

“Que a bolsa de valores, em substância
Retrata o poder e a ganância” (6)

Aproxima-se aqui, sem dúvida, para este leitor, claro, ao real, a este mundo em que vivemos, mas também nos diz que há que proceder com atenção, isto é: não cair em tentação, não ceder à ganância.

Talvez por isso o autor nos apresente logo de seguida uma elegia ou uma geografia necessariamente mínima ou um ensaio sobre o esquecimento, quase diria, tal como refere o povo, que quem tudo quer tudo perde; mesmo antes de nos convidar para uma antologia, isto é: selecta de flores; à qual designou por outros poemas, mas que consubstanciam a primeira série deste volume, à guisa de notas, mas sem a devida referência.

No cômputo geral, estou em crer que “Bolsa de Valores e outros poemas” é uma obra que nos interpela para os ecos do mundo, como se nos dissesse que há que escutá-los e que nos facilita a vida porque o faz em poesia, através da arte, quase diria pura e dura.

Um exemplo: “Natureza morta com flores”, onde, aludindo a um conjunto de designações associadas a flores, isto é: palavras que associamos a flores; nos diz de uma imagem que se vai construindo em nós. Tudo sempre sob uma atenta construção musical, ritmada em que, por exemplo, o uso das aliterações nos dizem mais do que as próprias palavras de onde estas são geradas.

É Domingos da Mota em acção, um vero oleiro, na acepção de iniciador, que nos lega, não sei se por palavras ou por sílabas, um mundo outro que só a poesia e seus mestres podem legar.

Notas:
(1) MOTA, Domingos da - Bolsa de Valores e Outros Poemas. Temas Originais. Coimbra. 2010. P. 11.
(2) MOTA, Domingos da - Ob. Cit. P. 25.
(3) MOTA, Domingos da - Ob. Cit. P. 33.
(4) MOTA, Domingos da - Ob. Cit. P. 37.
(5) MOTA, Domingos da - Ob. Cit. P. 39.
(6) MOTA, Domingos da - Ob. Cit. P. 40.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 18

quem molda
a seara

sabe do fogo

do ardor
da voz

que canta

e silencia
o sol

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 17

abre
ampla
a memória

o corpo

cada palavra
tem o peso
do tempo

e do silêncio

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 16

o que nasce

enlaça
o sonho

funde-se
no vento

e voa

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

sábado, 15 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 15

desperto

o cinzel
indaga

no ventre
da pedra

o poema

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 14

sinto
as palavras

como fogo

queimando
nas veias

da pedra

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 13

no mastro da partida
a palavra respirando
o vento
enfunado verso
de um poema azul

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 12

meu corpo é âncora. sente a noite
onde o cartógrafo desenha
a carta estelar. onde o poema
me visita para logo
partir.

com ele vou se adormeço
e acordo o sonho

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 11

Melancolia

há um regresso
escrito
algures

uma pedra
grávida
de formas

de humanos
desejos

um porto
algures
de onde zarparas

um cais
onde amarrar
a vontade

e um momento
este momento
de simples
sonhar

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 10

Louco

E pur se muove, Galileu,
em baixa voz pronunciaste.
Chamar-te-ão louco, qual orelha
de Van Gogh, copo matinal
repleto de absinto de Alfred
Jarry, alavanca que Arquimedes
usará para erguer o mundo.
Mas cinge as estrelas, planetas,
sol, lua pela cintura e
mede o deleite puro da
elipse. Esboça as estações.
Divide pelo mênstruo e
pelo bailado solar. Faz
teu ano, mês, dia. Cada hora
a ti pertence, embora louco,
na construção de sonho e de
futuro, segundo a segundo,
delineado e conquistado.

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

de "Palavras no vento" - 9

Intifada

Sentado em meu sofá, frente à TV,
vejo o mundo ou o mundo que nos mostram.
Independentemente de o ser ou
de o fazer ser, o facto é que há imagens
que marcam, que perduram penduradas
na íntima galeria da memória
e nos toldam o olhar, nos impele a
trazer, a passear, como escreveu
Eugenio Bueno, com a morte
debaixo do braço. Arde, no princípio
da triste galeria, uma mão, uma
pedra, obus mineral arremessado
contra o blindado. A mão seria de uma
criança se não fosse triste o olhar
como ave que receia o voo.
Mas, sobre esta batalha, não perguntes
quem vai ganhar ou quem vai perder. Só
sei que sempre haverá uma intifada
dentro do teu olhar secreto e puro
que será não de pedras, mas de lágrimas.

in "Palavras no vento" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2003)

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Prefácio a "27 Poemas", de António Rebordão Navarro



Pois bem, que dúvidas não restem sobre o que compõe este volume de poesia. São mesmo vinte sete os poemas que este “27 poemas” contém. Nem mais nem menos. 

Aliás, outra coisa não seria de esperar. Como é do conhecimento de todos, a Matemática é uma ciência exacta, pelo que o erro está posto de parte.

Embora a Matemática seja uma das componente mais importantes da Poesia (ela e a música) o certo é que a aridez deste título pode conduzir o leitor a um erro, a um grave erro.

Este “27 poemas”, embora tenha sido baptizado como tal, traz-nos um enredo, uma linha de continuidade deveras interessante, em que o poeta, insultado como tal, numa tarde de sábado, na Rua da Sofia, em Coimbra, nos oferta um olhar irónico sobre a cidade, a cidade sob o signo helénico.

E é em plena ágora que António Rebordão Navarro nos serve estes seus poemas, os vinte e sete enformadores deste volume. Aí, ele lega-nos a sua visão de morte e de amor, os grande temas de toda a arte poética, mas tudo com uma pitada da tal ironia que antes referi, mas também, talvez sobretudo, a sua própria praxis poética.

Ou seja: “27 poemas” dá-nos um importante contributo sobre a visão do autor acerca da forma como o poeta deve usar a palavra poética, inserindo-a no contexto cultural e social onde se movimenta, erguendo a sua voz mesmo que essa demanda seja “o lugar em silêncio do poema”, mas tudo porque “fazemos de conta / que o fogo não queima, enquanto ardemos” ou não fossemos nós os que nos fizemos “as pedras do edifício”.

Ler este volume é, portanto, deixarmo-nos conduzir, sempre olhando de soslaio, como diz o povo: “um olho no burro outro no cigano”; e enveredar pelos caminhos desta cidade, a dos homens, mas também da poesia.


Coimbra, 26 de Outubro de 2008


in NAVARRO, António Rebordão - "27 Poemas". Edium Editores. 2008