sábado, 30 de agosto de 2014

In Memoriam - Seamus Heaney

Há um ano, morreu o poeta irlandês Seamus Heaney, Nobel da Literatura em 1995. Tive a oportunidade de o conhecer aquando da distinção que a minha obra "O guardador das águas" mereceu por parte do juri do Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá, em 2004. Da curta troca de palavras, sempre bem disposta, no Palácio de São Marcos, recordo o que me disse, que tinha de ganhar todos os prémios. Respondi-lhe que sim, inclusive o Nobel. De imediato, disse: "of course". Recordando esse instante, e prestando homenagem ao poeta, deixo aqui um curto ciclo sob epígrafe, que foi publicado na Revista Oficina de Poesia 8 & 9 (Palimage, 2007).


Did sea define the land or land the sea?

Seamus Heaney


1.

o mar entoa a voz da distância
na clausura de um búzio

nada tem
definitivamente
de seu

talvez uma escassa sílaba
que escapa
como a areia da praia
onde se entrega íntegro
por entre os dedos de uma criança

2.

a terra entende
o secreto idioma do mar
a sua linguagem depurada

como ária que entre os rochedos
se eleva
na conquista das aves

no fascínio do voo

3.

e regressa o mar
ao corpo da terra

busca a contemplação
do rosto
que embora alheio lhe pertence

espelho que é
porque só renasce no olhar
que demandando o pronuncia

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

de "Stanley Williams"

a uma pedra não se nega
o rigor
do gesto nado
nos dedos do vento ou da água

só o tempo possui os seus mistérios
a decifração
de uma face diversa
ao caminho antes trilhado

nada é definitivo
tudo é transitório

e uma pedra será sempre uma pedra
se outro olhar a não indague
se outro olhar não desperte o cinzel
que só o tempo guarda

assim não façamos
como pilatos
que lava as mãos
na água da indiferença

há que dizer não

porque o não existe
como palavra
e não há por que temer seu uso

não se arremessa uma pedra
que atingira
o cume do seu monte para o abismo

sei: o carrasco cumpre o seu ofício
digo: cumpramos nós o nosso

não
não mais stanley williams

in "Stanley Williams" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 21

bebe-se o ar de um só trago
o travo dos frutos
que pintarão
a aguarela da paisagem

mas outros serão os sentidos
que interrogaram
a madeira na idade do fogo

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 20

abre-se uma janela sobre o mundo
o olhar é uma criança
que mergulha as mãos
nas labaredas do poema

que colhe os acordes do sonho
e semeia
o ritmo das estações

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 19

é na casa
que as palavras ganham asas
e habitam o olhar de espanto
de mistério

é na casa do poema
em seus rituais
que se decifram todos os sentidos

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 18

rigorosa
a chama invade o corpo da madeira
engravida-a de luz e cor
de sílabas

estas evolam pela casa
inscrevem-se a cinza
na memória das pedras

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

domingo, 17 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 17

queimam na boca as palavras
o ritmo as incita
revoltam-se
ferem os lábios da pedra

escuta-as
na breve fenda de um poema
nascem pela alvorada de um só verso

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

sábado, 16 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 16

domam-se as feras
o circo ergue a sua tenda
desafia a noite
com seu brilho

o domador do fogo
observa as feras domadas
observa como brincam pelo céu

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 15

na planura a fogueira ao centro o círculo
de pedras a convoca
as chamas ascendem e cantam
qual oráculo o futuro

recolho as labaredas
no côncavo das mãos
guardo-as no interstício de um verso

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 14

no corpo do poema
planta-se rigorosa a flor de maio
esta brilha
na conjugação do templo

reaberta
a fornalha espera
a pétala primeira de uma estrofe

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 13

consomem-se palavras na lareira
a noite fria foge
do corpo da madeira
crepitante

ou das histórias
de era uma vez
que esvoaçam em redor

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 12

secreto o fogo a gota do orvalho
na face ardendo
na face da pétala
criando esventrando a luz

o olhar que se molda
às próprias matizes
do espanto

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 11

no bojo de um qualquer vesúvio
se desenha o fim de um trilho
uma pompeia eterna
esculpida em cinza

o corpo de um poema
semeado em silêncio
na memória do tempo

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

domingo, 10 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 10

a noite é este silêncio
esta coberta
tecida a luz sobre o negro pano
o olhar sereno a descobre

ou as mãos colhem o gesto
que deuses ancestrais
semearam no início dos tempos

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

sábado, 9 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 9

nomeiam-se os instrumentos
os artefactos do ofício
quando o sol desperta
e acorda os sentidos

acende-se a forja
e a cada nome um rosto corresponde
cada qual em seu mister

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 8

remexe a tenaz a madeira
afaga-lhe lento o fogo
a face
esboça-lhe o caminho de ser cinza

o ferro rubro
aguarda a dor a forma
a água como unguento

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 7

tece-se a oiro a bordadura
do templo
breve é a chama
branca e pura que lhe toca

a oiro fino se tece
o desígnio do fogo
o destino de um corpo a demandar

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 6

fria bate-se a angústia do pão
forjado o ferro engalanando
soberbo no varandim
da casa senhorial

a fogo o suor trabalha
a dura epiderme o olhar
tombando sobre a mesa da fome

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 5

forte o sopro no côncavo das mãos
repousa a vontade
o ritmo descoberto
no arco que se desenha pelo espaço

cada palavra é um corpo
moldado e pronunciado
ao rigor dos sentidos

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 4

alada a palavra
como corpo da faúlha
desenhando na noite
a memória de um cometa

ou o olhar
amplo aberto ao sonho
da criação da forma de um poema

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

domingo, 3 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 3

na forja a lenta combustão
do silêncio
entre risos e acordes
libertos da memória das árvores

línguas de fogo lambendo
a face das pedras
esboçando a ciência da música

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

sábado, 2 de agosto de 2014

de "O fogo A cinza" - 2

serena é a arte do sol
o preciso conjugar
do nascimento e da morte
o bailado das sombras

ou a mesura do gesto
com que as mãos o olhar e a alma profanam
os segredos dos deuses

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Prefácio a "Transmigrações", de José Dias Egipto



Após o escrutínio do Júri do Prémio António Patrício de Poesia, organizado pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos, que à presente obra atribuiu a Menção Honrosa referente à edição de 2008, eis que “Transmigrações” cumpre mais uma etapa, talvez a mais relevante de todas, a de estar agora nas suas mãos disponível para a sua fruição.

Há neste volume um verso que me diz muito, porque me lança a seguinte questão: e se o acto poético fosse definível como a demanda d’”O significado de todos os silêncios”?

De facto, este verso assume, para mim, a verdadeira força motriz deste poemário, onde o poeta nos desafia para vinte dédalos, caminhos delineados entre signos a decifrar que, por vezes, nos são apresentados como opostos.

São vias para não só o cumprimento do desígnio da Poesia, como arte ou até ciência que nos aproxima, pela palavra, do Mundo, da essência do Mundo, mas, talvez sobretudo, nos leva “no andamento orbital / da música oculta / de todo o entendimento”, para a demanda acima referida.

José Dias Egipto traz-nos portanto um livro, no sentido de corpo integral, não mera compilação de textos, onde, mais do que nos diz, nos obriga a participar na sua própria construção, porque se trata de um volume não fechado, um autêntico livro de Poesia, onde “A pele nua que se reflecte, aberta, em inocência / e se encobre, mundana, nos disfarces da experiência” nos vislumbra enquanto a vislumbramos, se a isso ousarmos, em cada dobra de cada poema.


Coimbra, 30 de Outubro de 2010


in EGIPTO, José Dias - "Transmigrações". Temas Originais. 2010

de "O fogo A cinza" - 1

 


moldava o pai o fogo das palavras
o filho observava o acordar
da chama
o murmúrio do fole

ancestral era o gesto soletrado
as sílabas do malho
no cântico da bigorna

in "O fogo A cinza" (LASA, Setúbal, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011). Prémio de Poesia no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage - 2004, organizado pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.