domingo, 22 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 22

Chegara ao fim do caminho.


O preso cabelo do vento
soltara-se.



Ondulava no dorso dos montes.



Sente-se nos cascos
apressados
do poente.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sábado, 21 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 21

Era o tempo
do sereno
recolher das aves.


Nas folhas de outono
se desenhava o seu voo.



Em breve,
chegaria a chuva,
o frio,
a neve.



Em breve,
o borralho aquecendo a solidão.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sexta-feira, 20 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 20

No cessar de cada tarde,
o guardador recolhia
os artefactos do rigor
com que tecia o destino das águas.


Sentava-se junto à árvore
que plantara 
ainda criança.



Seu olhar repousava
no limiar do horizonte.



Amanhã,
sabia,
o sol iria brilhar.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

quinta-feira, 19 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 19

As pálpebras do círculo do fogo
tremem.

Sentem o peso das horas
do dia que declina.

O desejo
de se fecharem para o mundo.

De sentir
o feminino corpo da noite.

E fecundá-lo de estrelas,
do cântico dos grilos,
de sonhos.


in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

quarta-feira, 18 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 18

Não há crianças aqui.


O verão as traz
e o verão as leva.



Foram
primeiro
com o árduo vento,
a fria neve,
a agreste terra.



Como as águas
rumo ao mar.



Como as aves
rumo ao pleno sol.



Ficaram as casas,
seus rituais ancestrais
e as pedras,



as pedras com memória.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

terça-feira, 17 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 17

Vão para os pastos os pastores,
os cães,
os rebanhos manhã dentro.


Vão rumo às arestas
do nascente.



Aos braços
da erva enamorada.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

segunda-feira, 16 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 16

Ouve-se
ao longe,
o cântico de um galo.


Entre montes,
abrem-se,
em preguiça,
os olhos do sol.



Seus braços esboçam,
tímidos,
o abraço ao lugarejo.



Este responde.



Acordam homens e utensílios.



A terra aguarda o cultivo
ou a colheita,
os caminhos de água
reabertos.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

domingo, 15 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 15

A serpente ardia à boca da pedra.


Esta gemia
na lucidez da água.



A serpente mudara de pele.



Era agora
o corpo da água



pelo chão serpenteando.


in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sábado, 14 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 14

Sabia de uma guitarra
que aconchegava as vozes
nas noites de inverno.


Do vinho jorrando
em fontanários de madeira.



Dos corpos celebrando
a conjugação
das colheitas.



Não sabia do mar,
não partilhava o destino
dos rios.



O seu sonho era ficar.



Guiar a água
que guardava.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sexta-feira, 13 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 13

No côncavo das mãos,
iniciara o gesto.


Colhera a frescura
da nascente.



O verbo iluminado de um segredo,



de quem aprendeu
a adiar
o próprio destino.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

In Memoriam - José António Gonçalves


Cumpre-se hoje, dia 13 de Junho, sessenta anos sobre o nascimento de José António Gonçalves, camarada do Grupo Encontro de Escritas, que viria a falecer em 2005. Como homenagem, insiro um ciclo sob epígrafe que foi editado em 2006 na "Antologia de Escritas 3".

Sob epígrafe de José António Gonçalves


          dois palmos de novo dia e um poema

José António Gonçalves

1. anúncio de um novo dia

desprendem-se as tranças 
de um novo dia

um simples verso no corpo 
das ondas 
na face das rochas

e uma silhueta

ilha ao centro da ilha

medita o naufrágio 
um barco que navega por entre os sentidos 
na íris da última estrela


2. primeiro palmo de um novo dia

entre a estrela e a areia 
o mesmo instante se revela

escorre entre os dedos

escuta
desvendam-se acordes 
na brisa que passa. 


3. segundo palmo de um novo dia

ao cosmos regressa-se
nada dele parte em fuga

cada caminho desenha-se 
como afluente 
de um supremo mistério

e entre estrofes a chave permanece 


4. poema de um novo dia

a ave chega

talvez teus olhos não estejam
prenhes do seu corpo

mas ela chega

traz o cântico do mar 
na boca do sol que nasce

um verso que acorda
onde antes as palavras eram sombra

escombros na memória de um homem



quinta-feira, 12 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 12

Sobre a mesa,
o mistério do vinho
e da broa,
do queijo e da azeitona.


O sabor das lágrimas
e dos risos.



O ritmo íntimo das vozes
no entoo da jorna.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

quarta-feira, 11 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 11

Cedo,
aprendera a arte de domar
a vertigem das águas,


a moldar
rigorosos sulcos
na face dos caminhos,



o afago das águas
correndo
montes,
trilhos



até à raiz
serena do pão.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

terça-feira, 10 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 10

Escuta-os.

Iniciam o cântico da noite.


O nocturno despertar
de outras viagens.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

segunda-feira, 9 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 9

Libertos,
há cavalos no vento.


Ouvem-se na voz da brisa.



A tarde deita-se nos penedos,
aguarda o parto das estrelas,
dos cometas.



Os cavalos regressam,
relincham entre a folhagem.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

domingo, 8 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 8

Ouve.


Desenha-se o gesto,



o corpo da enxada
ferindo
o frágil e fértil corpo
da terra.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sábado, 7 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 7

Guardava as águas,
desenhava-lhes o curso.


Sob o alcance do seu gesto,
o sussurrar das águas
na epiderme da terra,



na rude face das pedras,



a sede saciada 
da terra cultivada.



in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sexta-feira, 6 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 6

No seu olhar,
as chamas dançavam,


mas o seu destino era outro,



não este

de moldador do fogo.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

quinta-feira, 5 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 5

Sentia os acordes do fogo,
suavemente,
navegando em suas veias.




in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

quarta-feira, 4 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 4

O guardador das águas
mergulhava
serenamente a cabeça
entre as mãos,
de cotovelos crivados,
suspensos
nas ombreiras dos joelhos.


in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

terça-feira, 3 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 3

Em casa,
no silêncio habitado da memória,


a lareira



cantava o destino
da madeira.


in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

segunda-feira, 2 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 2

Era longa,
a noite.

Manta tecida e estendida
pelos campos

que desconhecidas mãos
regiam


ao ritmo das estações.

in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

domingo, 1 de junho de 2014

de “O guardador das águas” - 1

 


Era de noite.

De breu se vestiam os montes,
a face do céu.

Por onde
vagueasse o olhar,
velas cintilavam
nas cortinas do cansaço

que os dedos do vento
acariciavam.


in “O guardador das águas” (Mar da Palavra, Coimbra, Portugal, 2005); “Viagem pelos livros” (Escrituras, São Paulo, Brasil, 2011) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra