sábado, 22 de novembro de 2014

Prefácio a "Galeria de Afectos", de Maria Antonieta Oliveira



O fio unificador do universo temático na escritura de Maria Antonieta Oliveira, que conheci sob o nickname de Avozita no sítio da Internet, Luso-Poemas, é, sem dúvida, o afecto, entendido este como o gesto que anuncia o afago, o estar presente no momento exacto, o sorriso que é casa aberta para o outro.

Este “Galeria de Afectos” é exactamente isso, um instante de instantes, uma digressão pela memória dos gestos, um Eu que, mesmo quando se descobre em solidão, procura em si mesmo a capacidade de indagar a janela que, como se soía dizer, se abriu algures quando a porta se fecha.

Trata-se de um ciclo onde, sobretudo, três outros ciclos confluem: poemas com destinatário; do foro amoroso; e do seu Alentejo.

Este movimento tríplice convoca-nos para a fruição das palavras vivas com que vai desenhando quase diria história em forma de verso.

Tal como a poetisa, “Abri a janela do mar / libertei-me de tudo” e, roubando o título a Alexandre O’Neill, “De ombro na ombreira” contemplei o nascimento de cada poema ao virar da página.

Fica portanto o convite: encontre e abra a sua “janela do mar” e entre nesta “Galeria de Afectos”.


30 de Janeiro de 2011


in OLIVEIRA, Maria Antonieta - "Galeria de Afectos". Temas Originais. 2011



quinta-feira, 20 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 20


dizem que perco tempo
sentado à beira deste rio
mas como se pode
aqui
perder tempo
se suave e doce é seu passar
e a vida nada mais é
do que este destino
de demandar a foz
sem outra condição

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 19


Conta uma a uma cada moeda. As
doze com que compraste essa figueira
onde do chão, por onde o pão germina,
tua fuga, pendente, desenhaste.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 18


No deserto das mãos, o gesto nasce
pródigo em criação. Gera do caos
as formas do poema, do leito onde
as palavras se deitam e comungam
a secreta matéria dos sonhos,
da memória. O breve dizer
da areia removida por José
Luís Borges mudando a face do
Egipto. Talvez quadra, simples, mas
profunda, como vale imenso, de
António Aleixo. Todas as palavras
como cacho em vindima aguardando a
hora de ser desejo, de ser arte.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 17


Na minha cidade há um poema em
cada viela, praça, rua, beco,
avenida, alameda. Em cada canto,
em cada olhar. Nas montras, nos reclamos
luminosos. Um verso explode nos
carros, nos autocarros, nos comboios.
Há um poema porque há vida.
Há gente que nas mãos traz o futuro,
traz o sonho, a esperança, o sentimento.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 16 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 16


A iluminada mão projecta a sombra,
Carlos Poças Falcão, in O Invisível
Simples. A sombra, como o verso, não
fica, à guisa de epígrafe, pendente,
isolada no topo de uma página.
Desce por entre as frestas do poema
e indaga a luz que nega. Traz seu nome
na esquina de uma sílaba esquecida
e, de súbito, surge entre a voz que
nomeia a iluminada mão. Regressa
ao centro do poema e seu corpo
com o corpo da luz funde em silêncio.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 15 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 15


a chuva morde os flancos da terra
suave e súbita
onde era sombra agora é corola
desperta à luz de uma sílaba

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 14


Aceso há um cigarro que ilumina
a noite por detrás de uma janela.
É estrela solitária ou cometa
que baila e brinca até sua extinção.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 13


Nada permanece. Abre o livro. O verso
ganha asas e renasce em tuas mãos.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 12


Na mesa do café, entre a bica e
uma amêndoa amarga, acende-se um
cigarro. A esferográfica arrisca o
fogo da poesia entre as notícias
do próprio jornal do dia. É triste
o poema, o poeta expõe não a obra,
o verso procurado entre o silêncio
e a solidão, mas sua foto tipo
passe, ridente, em página de necrologia.
Na mesa do café,
como cinzas, ficaram as palavras.
Que o vento as leve e traga noutro dia.
Hoje não, eu não quero poesia.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 11


Inclino a face. O lago responde e
acolhe a luz. Progride rumo ao ventre
do olhar e nele planta o desejo, o
esboço de uma máscara caindo.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 10


Sobre o tampo da mesa, um copo de
vinho, papel, cinzeiro, maço de
cigarros, um isqueiro e uma caneta.
A madeira, sob marcas, ocultava
outras paragens, gente circular
como o fundo da taça bebida. O
cinzeiro deformado, escondia ânsia,
solidão, uma espera prolongada
como ferida exposta. Puxei de um
cigarro. Olho em redor da taberna e
sinto como o poema anda na rua.
Anda dentro do olhar de homens, mulheres
e crianças. Habita nas mais simples
coisas. É ser que vive em cada recanto,
palavra, sonho, movimento.
Poema eternamente em construção.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 9 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 9


José Carlos Ary dos Santos, ao
ler-te observo a música do verbo,
da palavra artilhada, bomba, flor
pungente de amor, vida, de desejo.
Ler-te é uma viagem de demanda
de novas sensações e melodias,
acordes que fervilham e nos surgem
nítidos entre cada dobra do
poema. Mas ler-te é, também, sentir
o acordar na memória de imagens,
vozes: Fernando Tordo, Carlos do
Carmo, Simone de Oliveira. Ler-te
é saber de uma pátria de sombras,
pátria amordaçada, de um caminho,
do sol da poesia que alto brilha
e não cala, e não cala o canto, o sonho.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 8 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 8


Ao colo, uma criança dorme. A mãe
afaga-lhe o cabelo. O poeta abre
o saco da metáfora e sente a
fria e triste impotência de não
ter, por entre as palavras, uma imagem
solar que lhe descreva o brilho que
habita fundo no íntimo do olhar.
Recordo o terno afago, o doce gesto
de minha mãe. Seu rosto iluminado
enquanto me embalava para ir brincar
com o sono, para mergulhar
no sonho que em seu canto me promete.
De súbito, as palavras surgem. Trazem
o desenho do gesto, o esboço de
um sorriso, o calor da mão que tece
a candura da manta que me tapa
e que, serenamente, minha mãe
vai, quando me adormece, aconchegar.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 7


Recordo-me, era noite e cintilava
o poema na aresta do poente.
De longe, o vento traz o passar
de um comboio. Regresso ao corpo da
viagem. Há paisagens nas palavras,
searas que em espanto se revelam
no olhar que navega entre estrelas e
cometas. Mão que tece rumos na
memória. Era noite e o poema arde
no ventre das palavras ancestrais.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 6


No fim, será somente um ponto. Final
de um caminho. O que cruza esta fronteira,
recolhe entre mãos pó. Semente de
poema que em silêncio se gera.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 5


Escrevera na margem do rio o
meu nome como marca da partida.
Ao longe, o mar, espelho do sol, como
aguarela suspensa no olhar. Quadro
onde encontro o caminho, o meu caminho.
Embarco neste barco. Neste cais
deixo a última semente da saudade.
E vou. Procuro o mar. Há uma ilha e
um canto de sereias que me chama.
Indago nome e rosto, a queda das
máscaras, como um último poema,
criação derradeira do poeta.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 4


Há séculos de vozes pelas veias
de cada poema. Abrem suas asas
no esboço circular de cada voo
em torno da palavra inaugural.
Herdámos instrumentos, movimentos,
o despertar do olhar, o seu mistério,
a cadência, a música, o silêncio
habitado de todas as memórias.
Resta-nos o desígnio, o contemplar
sereno das cidades e dos campos,
dos homens e das obras fruto dos
seus gestos. Indagar pela raiz
desta árvore frondosa que nós somos.
E plantar, semear o verbo para
quem nasce e em cujas mãos o tempo
será de novo nado e redivivo.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 3


São singelas as coisas que me espantam,
que me seduzem. Pássaros em voo,
uma canção de Zeca Afonso, um só
poema de Alexandre O’Neill, um quadro
de Vieira da Silva. Sensações
que indagam o desejo de ser livre.
Cortar amarras. Ir até onde o
horizonte for fim, for limite,
o limite do espaço e do tempo,
ponto final do próprio poema.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 2 de novembro de 2014

de "Afluentes do poema" - 2


Sou como um rio. Trago em minhas águas
memória de alheias vozes como
se fossem afluentes do poema.
Embutidos retábulos no cerne
da madeira mais pura. Frutos
de pomares por onde o desejo é
brisa de aromas frescos e suaves.
Sou como um rio. Vou para o mar. Trago
nas águas o sonho de sonhar.
Arado que em silêncio engravida
a tez deste papel ensandecido.
Sou como um rio. Ensejo chegar ao
mar. Ser filho do tempo em que vivi
embarcar no poema e partilhar
palavra, sonho, vida, poema...

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 1 de novembro de 2014

Prefácio a "Matiz do Mundo", de Gabriela Pais



Matiz do Mundo, de Gabriela Pais, este mesmo livro que agora está consigo, é o convite, mas também o próprio acto, para a auscultação da música que o mundo contém e que cada vocábulo tenta reproduzir.

Mas vai para além disso, leva-nos para a contemplação do mundo, para a sua possível decifração através do espanto que em nós pode, se para isso estivermos disponíveis, despertar.

Cada fragmento que compõe este volume, quase diria, assume-se como uma pintura do instante, uma história que nos é revelada através da palavra poética.

Matiz do Mundo, na minha perspectiva, trata-se de uma autêntica galeria, organizada com uma harmonia sem mácula, que o formato idêntico de cada poema nos sugere.

Ao vaguearmos através desta verdadeira exposição, o nosso olhar transforma-se em luz branca, possibilitando assim a revelação de todas as tonalidades que a junção de palavras eruditas, quotidianas e regionais propicia.

Por último, um aspecto que me parece relevante: a forma como, por vezes infringindo as regras gramaticais, usa a pontuação para a descoberta da sonoridade.

Trata-se, portanto, de uma obra assumidamente artística, onde se vislumbram na sua construção vestígios oriundos das mais múltiplas expressões de arte.

Coimbra, 19 de Janeiro de 2011

in PAIS, Gabriela - "Matiz do Mundo". Temas Originais. 2011


de "Afluentes do poema" - 1


Regresso. Sinto o fogo da Biblioteca
de Alexandria ríspido nas
veias do poema. Há um verbo a conjugar.
Uma criança a correr entre
alamedas de espanto construindo
a memória. Nada a prende ao mundo.
Tudo é madeira virgem onde gravar
as sílabas do sonho. Pedra onde a
face se expõe ao vento impiedoso
dos tempos. Mas a lágrima surge e
cava no rosto artérias de dor.
E regresso ao meu novo ofício. À
arte de depurar sombras e cinzas.
Nada digo à criança. Talvez um
dia as cinzas revelem seus segredos.

in "Afluentes do poema" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)