sábado, 20 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 95 a 100


VENTO

ouve
habita nas ramagens
a voz do vento

VER-TE PASSAR

Ver-te passar
é saber como é breve o tempo
e perene o desejo

VIAGEM

Nos cabelos de um cometa
sonho a viagem
vou de partida

VIAJANTE

Entre o pó e o homem
há uma sandália
de um viajante

VIANDANTE

Como bagagem
levo a memória
de um caminho a percorrer.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 91 a 95


SIMURGH

Entre o céu e a terra,
una é a essência
porque una é a sua matriz.

SOMBRA

A sombra salta o muro. Esconde-se
do sol ou aguarda por ti
para te acompanhar.

SONHO

No secreto gesto,
que as mãos do desejo despertam,
abre-se o trilho do sonho.

TEMPLO

corpo exposto
à semente fecundante
do silêncio

VELEIRO

O mar azul, súbito branco
nos flancos da areia ou poema,
veleiro em papel no horizonte.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 86 a 90


SEREIA

Entoa a canção do mar.
Serenamente me recolho
em seu secreto cântico.

SERPENTE

Entre a maçã e a boca
o gesto
que se dissolve em desejo.

SILÊNCIO

liberto
o silêncio pesa
a voz que o pronuncia

SILÊNCIO, outro

Somente o rumor das águas
e o breve dizer das aves
para romper o hímen do silêncio.

SÍMBOLO

Na mão profunda do ser
reside o símbolo: o que existe
e os sentidos alcançam.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 81 a 85


REPARA

Murmura o sol sobre a planura.
Repara como urde fio a fio
da sombra e da luz o destino.

SAUDADE

Ave que esboça o regresso
no soturno céu
da partida.

SEARA

Esta é a seara onde
colhes o fruto como verso
do ventre de uma escrinha.

SEMENTE

Das mãos se desprende o gesto:
a semente que deseja
ser flor, ser fruto.

SEMENTEIRA

Consumo as palavras,
os sentidos das palavras,
no semear do poema.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 76 a 80


PRESENÇA

habita alguém
na face do poema
no acorde de cada sílaba?

QUADRO

Ao centro da branca parede
emoldurei um sonho, uma janela
com vista para o desejo.

RACHMANINOV

O mundo pára
enquanto escuto Rachmaninov.
É outono e as folhas pairam.

REGRESSO

Como o barco
ceifei nas ondas o desejo
de regressar.

REGRESSO, outro

teço o regresso
nova partida
num ponto de penélope

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 71 a 75


PARTIDA

De súbito, trouxeste
a meus olhos
dezembro em pleno agosto.

PASTOR

Com ágolo e flauta, o pastor
que guardava as palavras do vento
pelas estrofes do poema.

PAZ FÁTUA

rente à terra
um ramo de oliveira
aguarda a pomba prometida

POEMA

O poema não é as palavras,
voz em silêncio, é esta pedra
que o olhar, em espanto, cinzela.

POMPEIA

Sob o tempo, o silêncio
dos amantes
nas cinzas esculpido.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 14 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 65 a 70


OFÍCIO

As pedras ofendem o vento.
Este trabalha. Paciente,
espera o desenho e parte.

OLEIRO

Entre a mão e o gesto
o despertar do corpo
ou do silêncio.

OMEGA

Águas calmas do poente,
por que me chamas
se para ti navego?

ORAÇÃO

Bendito seja o fruto de vossos
lábios de mel, onde a minha sede
se consome, amén.

OUTONO

folha a folha
pela mão do vento
se desenha o outono

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 13 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 61 a 65


NÁUFRAGO

O poeta é náufrago
por entre a memória
em construção

NOCTURNO

no uivo da noite
o cão
de breu se veste

NOVILÚNIO

Habito o sonho e sinto
a leveza do voo lunar
neste tempo novilúnio.

OCASO

Por acaso, o ocaso nasce
no limite do mar
ou na raiz do teu olhar?

OFERENDA

Vou, como o Eugénio de Andrade,
com as aves. Vou rente aos campos
colher-te, mãe, uma flor, um verso.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 56 a 60


LUA

Majestosa, regente do mênstruo
e do desejo, a lua
entre nuvens oculta.

MÃO

Desperta do silêncio
a respiração contida
na pétala de uma pedra

MÁSCARA

Máscara é a nudez
do homem definida
com a sua queda.

MEDO

Sei, não partiste, dormes a meu lado,
mas consumo cada dia
como se fosse, de nós, o último.

MUSA

pergunto-me do verbo
do nascer frágil do poema
e só tua face almejo

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 51 a 55


JOB

Sobre a pedra, aguardo
que o destino desça
este caminho ao meu encontro.

KY-LIN

De súbito, habita
o poema. Depois, o olhar.
Teu ventre iluminado.

LAREIRA

Ouço crepitar.
Da infância, a voz renasce
no lento fogo da memória.

LETES

Pétala a pétala, esvai-se
a memória nas margens
deste rio que atravesso.

LIBERDADE

Num sonho de Espártaco, avanço
com asas de Ícaro pelos céus
num fio de luz, de ilusão.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 46 a 50


ÍCARO

Ícaro não vem.
Sem asas, resignara-se
a voar.

ILHA

Um desenho azul
de aves, a ilha, em voo
circular no horizonte.

INTERAMNE

Entre águas, escuta
o insinuante nascer
do rumor do silêncio.

INTERMEZZO

Entre astros,
estrelas cintilantes,
o pó.

INTERMÚNDIO

Entre mundos, a solidão
de não estar aqui
ou em lado algum.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 41 a 45


GATO

Sobre a ombreira do tempo,
ou num quadro de Foujita,
dorme o gato da infância.

GERMINAÇÃO

ponto final
parágrafo
o insano ofício de escrever

GESTO

Na lentidão do seu gesto
ergue-se do caos
o próprio corpo do oleiro.

GRILHÕES

Não voes para lá do olhar,
só podes desejar
o que os sentidos te ofertam.

GRITO

A mão cinzela a pedra
gera a boca
que silencia o grito

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 36 a 40


ESPELHO

onde a face de narciso
se recolhe, oculta
a palavra se revela.

ESTÁTUA AO POETA DESCONHECIDO

repousam as pombas nos ombros
do poeta ou da noite
que cai dentro do próprio poema?

FILIGRANA

entrelaçados
na contemplação da jóia
os cabelos do sol

FONTE

Do ventre da pedra,
o segredo da água
sedenta de luz.

FRAGILIDADE

frágeis são as manhãs
as pétalas do orvalho
anunciando a despedida

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

domingo, 7 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 31 a 35


ESCADA

Desejo de ascese
degrau a degrau
da sombra à luz.

ESCREVO

Escrevo este aflito
não dizer
por que grito.

ESCRIBA

Sob o bailado da trémula
luz da vela, copia, letra a letra,
a letra da memória futura.

ESCULCA

Chove, mas persiste. O mundo
gira, mas fica. Guarda o silêncio
ou talvez um sonho.

ESCULTOR

No olhar, não pedra, mas a
forma, o movimento circular
do cinzel que gera o corpo.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sábado, 6 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 26 a 30


DESEJO OCULTO

Nascem flores ou verbos
imagens de um movimento
para um desejo oculto

DESERTO

Onde o nada é luz
e a distância
caminho e contemplação.

DESTINO

O que Diana me fez, sou.
Cumpro meu fado de Actéon
só para ter beleza em meus olhos.

DÚVIDA

Onde cabe um sonho
se tudo é o limite e o nada
inexistente?

ENFORCADO

Aqui jaz o enforcado
o que negou o chão
que o aguardou e o acolheu.

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 21 a 25


CIFRA

nomeio uma ave ou um rio
mas quero dizer voo e sal
ou o homem e seu desígnio

CORRIXO

Há um canto, um poema,
a memória de um verso
iluminado na voz do tempo.

CRIAÇÃO

o gesto nasce
no respirar
da pedra

DECLARAÇÃO

Declaro:
todos os versos são inúteis
sem que o olhar os ilumine.

DERVISH

a arte de comunicar
a perfeita elipse
o homem como palavra

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 16 a 20


CAMPONÊS

Antes do início dos tempos
já o camponês arava
a memória em silêncio.

CANDELABRO

Bailam as chamas:
conjugam a sua extinção
nos lábios do vento.

CANTO

No dorso da água, a silhueta
de uma voz, canto de sereia
que me prende à viagem.

CEIFEIRA

Ao rigor
da jorna, a dor
curvada.

CICLO

O criador cria
a coisa criada
que cria o criador?

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 11 a 15


AVE

Serenamente, se recolhe.
Indaga a fórmula do espanto
incendiando o voo.

BARCO

Há um verso à deriva
na palavra
azul do mar.

BULÍCIO

No bulício
da cidade, o que faço?
Planto ruas na memória.

CÁLAMO

onde a metáfora brilha
entre os dedos
na floração das palavras

CAMINHO

Sigo o caminho do poente
vou com o sol e as águas
provar do sal o silêncio

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

terça-feira, 2 de setembro de 2014

de "À beira do silêncio" - 6 a 10


ÂNSIA

alado corpo
na herança
das palavras

ARA

Oculto em teu corpo
há um rumor habitado
nas veias do silêncio

ARTE

nasce o gesto
a mão mergulha
na água do saber

ARTÍFICE

Entre dedos, o fumo de um cigarro.
Consumo o tempo que me resta
de artífice de memórias.

AUSÊNCIA

do barco resta a espuma
moldada pela proa
e o vento de fugida

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sobre “O dia em que te recordei”, de Rita Cipriano




Como Jacques de La Palisse, direi o seguinte: Escreve-se porque se tem memória, mas escreve-se para preservar essa mesma memória. Neste jogo em que a memória surge como princípio e fim, e a escrita, quer na sua vertente criativa, quer na sua vertente de usufruto, nos aparece como meio, é onde esquadro esta obra da autoria de Rita Cipriano.

Nela há uma digressão, quase diria sob a égide da filha de Urano e Gaia, a titânide Mnemosine, que é, segundo a rica mitologia helénica, a personificação da memória. 

Mas é algo mais do que essa personificação. Mnemosine é a mãe, sendo Zeus o pai, das nove musas, aquelas que inspiraram os artistas e, também, os astrónomos e os filósofos.

Digo isto porque nesta obra há a presença constante da memória, quer declarativa (episódica e semântica) quer inclusive a não declarativa.

Assim, por este livro encontramos vestígios da recolha, do guardar e sobretudo, naturalmente, do evocar. 

Ou não fosse a memória o utensílio mais precioso para o conhecimento.

Talvez por isso, porque é base do conhecer, Rita Cipriano inicie este seu livro afirmando: 

“Gostava de conseguir escrever-te tudo o que escrevo e saber dizer-te o que te digo de outra forma”. (1)

A escrita, tal como a memória, evolui, constrói-se. É um processo. Mas este tem como intuito, tal como conclui a autora: 

“escrever todas as coisas bonitas que esqueço e não te esquecer nunca.”(2)

Há portanto a necessidade do registo, o tal preservar que há pouco referi.

Mas não é só a razão, ou a tal componente declarativa, a pesar nesta digressão que a autora faz neste dia, o dia, não um dia. Ela move-se, quase diria intuitivamente, como se fruto da memória não declarativa se tratasse, erguendo os escombros que a ausência semeou, onde, tal como escreve:

“querer era esconder-te aqui, preso ao peito e ao passado que agora devora”(3)

e tudo porque: 

“trazer-te era senão o vazio com que te encontrei”.(4)

É portanto, naturalmente na minha leitura, a presença de algo, quase diria, subconsciente. Algo que acordou porque foi necessário utilizá-lo. Em ambos os casos citados surge-nos como mecanismos de catarse. 

Se no primeiro é a dor presente, uma ferida (passado que agora devora), no segundo é uma espécie de readormecimento, uma cicatriz, sob a forma de vazio.

Mas há um perigo no reavivar da memória: há que reviver intimamente cada instante reanimado e mesmo que neste se operem transformações, deste não escapamos, tomando de novo consciência, como refere Rita Cipriano:

“Enganados, pensamos que deixámos o único lugar conhecido.”(5)

Comecei afirmando que “Escreve-se porque se tem memória, mas escreve-se para preservar essa mesma memória”. No entanto, Rita Cipriano traz-nos também o oposto, o olvido, melhor: o supremo olvido, a morte.

A morte explícita e implicitamente acompanha-nos por todo o livro. Vem, quase diria, ao lado da memória. Ambas partilham da respiração, da cadência com que a autora elaborou esta narrativa, melhor este poema.

Diz-nos que 

“Conhecer uma cidade é conhecer-lhe a morte”(6) 

(torna-a portanto um acto de indagação) 

ou refere 

“A tragédia das coisas nasce da memória das coisas poucas”(7)

dando como exemplo imediato 

“da vista da casa para o cemitério”(8)

(algo mais concreto, embora aqui como aspecto de associação) 

ou como algo sentido, vivenciado como

“faço os dias evaporarem como fumo”(9)

(a ideia de morte em vida) porque, tal como nos diz, 

“só para a morte existe tempo”(10)

até a uma espécie de esperança em que a morte se torna início de um novo ciclo, de uma nova construção de memória quando escreve: 

“até que o meu mundo acabe, a história termine, dando lugar ao que nunca conheci”.(11)

E digo esperança apesar de a autora constatar que tudo foi porque: 

“ceguei cedo, ao que nunca cheguei porque encurtei o caminho, às flores e às cartas que nunca recebi porque as arranquei todas”(12),

mas o certo, certo é que no fim de tudo, como escreve Rita Cipriano:

“Sobras tu”(13).


NOTAS:
(1) CIPRIANO, Rita – “O dia em que te recordei”. Temas Originais. Coimbra. P. 7
(2) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 7
(3) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 13
(4) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 14
(5) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 17
(6) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 11
(7) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 25
(8) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 25
(9) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 32
(10) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 34
(11) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 34
(12) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 34
(13) CIPRIANO, Rita – Ob. Cit.. P. 35

de "À beira do silêncio" - 1 a 5


AGORA

Agora, ao som do mar distante,
adormeço nos braços da noite
como quem morre para renascer.

ÁGUIA-PESQUEIRA

Cia rumo ao espelho de água
como quem indaga
do movimento a matriz.

ALEGORIA

por entre as mãos
desfiam-se as palavras
na depuração da luz

ALFA

Entre colunas, vejo ao fundo
a escada. Aí, dás-me as
palavras. Eu ensaio o voo.

ÂNDROCLES

há um gesto uma palavra
uma semente
o nascimento de um poema

in "À beira do silêncio (uma centena de experiências em poetrix)" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2006)