Em “27 Poemas”, António Rebordão Navarro
escreve no poema “O grito” que:
“essa tarde de sábado em Coimbra,
(Rua da Sofia, há muitos anos),
em que me insultaram de poeta.” (1)
É,
portanto, pelo exposto, necessário, para quem reside na cidade de Coimbra,
embora no outro lado do rio, na minha sempre bela Santa Clara, mas que, por
duas vezes, trabalhou na Rua da Sofia, curiosamente, à data, balizas da minha
passagem pelos jornais, repetir o insulto. E se assim é, que assim seja.
Pois fique
sabendo, caro António Rebordão Navarro, que, quer queira quer não, é mesmo
poeta.
Recorro a
um excerto de uma matéria publicada no Jornal
de Letras, a vinte e quatro de setembro de dois mil e oito, sob o título
de “O poeta
na cidade, hoje”, da autoria de Eduardo Lourenço, onde este, a dado
passo, escreve o seguinte, algo que, julgo eu, servirá para justificar o que
acima mencionei:
“(...) os que sob
a superfície lisa das águas escutam um rumor, um apelo que, literalmente
falando, os não deixa viver, ouvindo o já ouvido, mesmo o mais belo e sublime,
e buscam por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu
próprio tempo, e que não sossegam enquanto o não inventam e se perdem nele para
se salvar. São eles que nós chamamos de poetas. São os que acrescentam a
criação à criação e assim renovam o mundo.” (2)
António
Rebordão Navarro enquadra-se neste possível esboço do que é, ou pode ser, o
poeta. O que busca “por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu
próprio tempo”, o que acrescenta “a criação à criação e assim” renova “o mundo”.
E este seu
livro: “27
poemas”, sob a capa de uma pretensa aridez anunciada pelo próprio
título, corrobora essa afirmação. Mas entremos no livro, neste “27 poemas”.
Este
volume sugere-nos, pela natureza do título, uma mera compilação de poemas. Algo
sem um fio condutor, desprovido de uma ligação interna.
No
entanto, ao abri-lo, deparamo-nos com um poema cujo título poderá ser demolidor
dessa ideia. Lê-se: “Profissão de fé”; ou seja: uma declaração pública daquilo em que
se crê; e onde o poeta nos oferta esta quintilha, que é, na minha opinião, a
parcela mais relevante e que passo a citar:
“Eu sou, minha senhora, a sua sombra.
Estou consigo quando você se esvai,
me castiga ou compõe
com religiosos dedos a gravata
sob o colarinho
amarrotado.” (3)
É, na
minha leitura, o primado da vida. A morte, que encontro nesta senhora, perde o
seu estatuto perante o homem, perante aquele homem que, tomando consciência
plena desta, agarra com ambas as mãos o leme do seu próprio caminho. Ele é a
sombra da morte, não o contrário.
Esta
firme convicção em o poeta poder tomar como que posse da morte, ou seja: do
medo, do medo último, para ganhar os argumentos essenciais para a plena fruição
da vida.
Naturalmente
que o amor, melhor: a relação amorosa; é um desses possíveis argumentos. Aliás,
ele está bem presente na sensualidade patente no poema “Movimento marítimo”, embora nunca
perdendo de vista que é, tal como se refere em “Declinação do amor”:
“Por ele [ou seja: o
amor] nos vamos destruindo.
Corroídas, as palavras
sobem ao céu da boca, crucificam-se,
sabem a língua morta.” (4)
Em suma,
leio aqui que o amor não se faz. Muito provavelmente nem se construirá. O amor
é. E só desta forma ele deixará de ser um possível argumento, mas um dos mais
relevantes argumentos para a tal plena fruição da vida.
Falei
desta convicção, a de tomar como que posse da morte. Ela conduz à possibilidade
da fundação do templo, um espaço interior, íntimo, a que António Rebordão
Navarro, naturalmente esta é a minha leitura, denominará posteriormente de
casa.
No
primeiro de dois poemas intitulados: “A fundação do templo”; observamos um interessante
jogo de antíteses. Como exemplo:
“Você pode ser lúcida e ser louca” (5)
ou
“Você é uma lâmina,
ou um lago deixando-se sulcar” (6)
No fundo,
estamos aqui, apesar de ser o templo interior, íntimo, a observar, neste jogo
de verso e reverso, uma imagem do mundo, do real e do mundo outro que só a boa
poesia pode criar. Embora este último seja um mundo outro, diverso, não está
dissociado do real. O mundo é um eterno jogo de opostos.
E é por
isto que há pouco afirmei que o templo passa a ser casa. Embora lugar de
refúgio, de protecção, mas também de afecto, é ponto de partida e de chegada, é
espaço de reflexão que, permitam-me a expressão, só o nosso próprio cantinho
propicia e potencia.
De novo,
as convicções. No primeiro poema deste tríptico intitulado: “As casas (...)”, Rebordão Navarro lega-nos
isto, e cito:
“Fizemo-nos as
pedras do edifício” (7)
Embora
exista a passagem de templo, espaço sagrado, de veneração, para casa, espaço
habitado, logo mais ligado à vida, ao quotidiano, eles, templo e casa, persistem
no poeta, no construtor do poema. Melhor: o poeta é templo e casa. São a mesma
entidade, o mesmo ser.
E é aqui,
neste ponto, nesta junção entre o interior e o exterior, não só do mundo real,
mas do mundo outro que a poesia revela, que chegamos ao epicentro deste livro.
Um simples
cálculo matemático seria suficiente para o determinar, mas, perdoem-me os
matemáticos, ler é muito mais divertido.
Ora bem,
se são vinte e sete, o décimo quarto está à mesma distância do primeiro e do
último.
Esse
poema, o tal epicentro do livro, tem o nome de: “Concerto”; um nome que por si só já nos
diz muito. É um poema singular neste volume, marca a diferença relativamente
aos outros vinte e seis enformadores da obra. É o único dedicado, neste caso a
Silvestre Fonseca e é, também, o único datado, desta feita consta: Vila Viçosa
/ 09-06-1987.
Para
além de nos mencionar o óbvio, mas algo só adquire essa característica porque
alguém o disse, ou seja: todo o poema é dedicado a algo ou a alguém e todo o
poema nasce ou ganha a forma com que se apresenta ao outro, ao leitor, num
determinado lugar e numa determinada data, refere-nos da importância da
musicalidade no poema.
E esta
musicalidade, que as palavras também constróem, para além da sua fundamental
carga racional, desperta no outro, no leitor, o lado emotivo.
Como
refere Fernando Pessoa, num texto sobre estética, e passo a citar:
“um poema é um produto intelectual, e uma
emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si,
intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma
emoção é uma existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da
inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção.” (8)
Talvez por
isso, digamos assim, a segunda parte do livro se inicie com o poema “Cor-cordis”,
o espaço referencial do coração, aqui, pelo menos assim o leio, como espaço
onde a memória habita, a tal recordação referida por Fernando Pessoa. E este
reavivar da memória é bem patente pelo engenhoso processo anafórico presente
neste poema.
Aliás, a
importância da memória na construção da obra é sublinhada pelo poeta quando
este afirma no poema: “As águas”, o seguinte:
“Em vão nada se faz, nada se queima.
Projectam-se partos na memória.” (9)
Em jeito
de resumo, diria que “27 poemas” é uma viagem. Uma viagem com amor e morte, que são os
grandes temas da poesia, mas onde a própria poesia é, de facto, o tema. Essa
enigmática figura que nos surge amiúde referida sob o pronome “você”. Mas toda
esta viagem é-nos servida com diversas referências culturais e com o registo
crítico e irónico que, quase direi, são a imagem de marca do autor.
Para
concluir, porque o poeta não permitiu ao amante viver até ao fim do filme,
deixando essa revelação exactamente no dístico derradeiro, afirmando a sua
morte na coxia, permitam-me que descubra um porto. Por isso, deixo-vos um
poema, um poema que tem como título um espaço bem concreto: “Porto 1”:
“Um dia, a palavra fez-se carne.
Ou sucedeu justamente o contrário?” (10)
NOTAS:
(1) NAVARRO, António Rebordão – 27 Poemas, Edium
Editores, S. Mamede de Infesta, 2.ª edição, 2008, P. 24.
(2) LOURENÇO, Eduardo – O poeta na cidade, hoje. in
Jornal de Letras. 24 de Setembro de 2008, P. 39.
(3) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 12.
(4) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 19.
(5) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 20.
(6) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 20.
(7) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 26.
(8) PESSOA, Fernando – Obras Completas III, RBA, 2006,
P. 199.
(9) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 39.
(10) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 35.