quinta-feira, 26 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 51 e 52


XAVIER ZARCO

onde o poema cessa
outro poema
nasce

como se um abraço
se desenhasse em cada braço
que enceta
um movimento circular

*

É nas mãos que nasce o gesto

Xavier Zarco

É nas mãos que nasce o gesto;
onde reside o fogo de criar
na frondosa árvore a caravela.

Sentir, na seiva, a carícia,
o cântico do vento
pelas veias vegetais.

Observar o destino das raízes
e, por elas, aprender
o ofício navegante.

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 25 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 49 e 50


WILLIAM BUTLER YEATS

e há uma árvore no meio
da floresta

ninguém escutava as palavras
que se desprendem
de seus ramos

muitos ocultavam
o seu sereno cântico

havia quem a quisesse
ferir de morte
derramar
o seu imenso corpo sobre a terra

mas ninguém
ninguém calará o poema
quando nasce
no próprio corpo do vento

ninguém decepa a palavra
quando o sol
em sua corola se abriga

*

I have spread my dreams under your feet

William Butler Yeats

semeio meus passos e sonhos
pelos caminhos

sobre o pó repousam

aguardam a passagem de outros passos
para que meus passos e sonhos
se elevem

semeio como quem deseja
mais que passos ou sonhos
somente meus

há tantos passos e sonhos
a ser dados e sonhados
que outros mais

para mim e para ti
quero semear

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 24 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 47 e 48


ZHANG KEJIU (XIAOSHAN)

no cimo da montanha
a águia vigia as árvores
semeadas
pelos discípulos de confúcio

cada uma à sua guisa
leva-me
para a serena contemplação
de um poema

o regaço de um rio
a altivez de uma muralha
o segredar
de uma palavra oculta

ou a limpidez
de uma aguarela onde o olhar
se desprende
para o mistério da viagem

*

um passo basta para vencer o vazio

Zhang Kejiu (Xiaoshan)
Tradução de Albano Martins

observo as gaivotas no rio
as crianças correndo no jardim
e pergunto-me
onde fica e o que resta do vazio

deixo o saco as palavras que sobraram
num canto qualquer
e parto rio abaixo no sorriso
das crianças

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 23 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 45 e 46


WALT WITHMAN

deste as próprias veias ao canto
do homem simples

do que abre fronteiras
com o sangue do seu sonho
do seu corpo

com ele dormiste
tendo as estrelas como confidentes
do murmúrio das ervas

do seu cântico em coro
de uma esperança
tão próxima como longínqua

mas este era o teu sangue
e este o teu destino

palavra a palavra tecido
vivido e sentido
na semente de um poema

*

I am the poet of the body,
And I am the poet of the soul.

Walt Whitman

há uma artéria
(sinto a sua serena presença)
que irriga a alma de sangue

um vínculo
um cordão umbilical
do corpo à alma

decifrar as secretas
vias
é o desígnio desta voz

que emerge do poema em construção

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 22 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 43 e 44


CESÁRIO VERDE

Gosto do alexandrino, da sua ruptura:
A arte de respirar no centro do poema.
E a cidade, os costumes, a quase aldeia
Em tela iluminada em fina partitura.

Ah! Cesário Verde, como é natural
Cada verso, cesura nada em tua lavra!

*

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo

Cesário Verde

percorre o olhar
os campos dos espelhos

de dentro
uma outra face surge poderosa

iluminada de poente
em plena aurora

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 21 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 41 e 42


GIUSEPPE UNGARETTI

pode o mundo ser este mosaico
que se despede
lentamente de um olhar

podem estas palavras
serem as ruínas
de um poema jamais lido

mas o mundo e as palavras
com que erguemos o poema
somos nós

assim
aprende e crê
não há fim mas recomeço

*

M’illumino
d'immenso.

Giuseppe Ungaretti

as palavras entoam os acordes
do gesto debruçado sobre a terra

há um varandim preso ao decifrar
do segredo dos dedos em carícia

e uma pena suspensa sobre o mar
iluminando a face do poema

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 20 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 39 e 40


MIGUEL TORGA

tinha de ser flor
nada em rude pedra

em cada dobra
se seus poemas
se descobre
a prece de um voo

um mapa
de indagação solar

na epiderme
de todos os sentidos

*

Falavas, e era música na terra

Miguel Torga

escreveram-te poeta
no mais belo
papel timbrado do mundo
em carta registada com aviso
de recepção

anunciava oficialmente
a morte da poesia

como cigarra
na fila do desemprego
escutavas a voz das formigas
servos da gleba
dos mercados bolsistas

aí soubeste que o poema
era uma arma
uma canção que tinha urgência em ser ave

e subindo ao coreto da esperança
cantaste o nascimento de um poema

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 19 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 37 e 38


JORGE DE SENA

abre-se a fenda
uma ferida exposta na pele
do templo do tempo
das palavras

há um fogo
que matiza suas pedras

um livro nado
e resgatado
de um gesto inicial

uma história
que só nesta era tinha
mais de dois mil anos

uma palavra nova
arremessada
pela íntima fúria

a paixão das coisas
que as mãos erguem e suportam

*

E regresso um pouco triste a uma alegria imensa

Jorge de Sena

ulisses é a viagem
penélope o regresso
ítaca a partida

o que nos aguarda
senão o desígnio
da viagem

de um mar por cruzar
de um silêncio a habitar

cada instante é um rasto
uma pegada

a secreta
cartografia de partir
e regressar

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 18 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 35 e 36


ANTÓNIO RAMOS ROSA

onde o gesto nasce abre-se o livro
a cada gesto corresponde
o nascimento de uma sílaba

ao ourives o ofício
do filigrana

ao poeta a música
a musa dos sentidos circundando
gravitando
em torno do ouro

a palavra inaugural

*

Se escrevo é porque nunca vejo mesmo quando vejo

António Ramos Rosa

escrevo na margem
vegetal
do silêncio

onde o silício se eleva
na fragilidade
da memória

e as mãos devoram
a matéria dos sonhos

entre as fragrâncias
breves
de um olhar

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 17 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 33 e 34


ANTERO DE QUENTAL

brilha o voo nas asas de um açor

em redor a aguarela
pinta-se de azul

seria mar
se o olhar
não se perdesse ao longe

onde habitam as sílabas
ondinas que cantam
a seiva do poema

*

Também me busco a mim... sem me encontrar!

Antero de Quental

espelho que me aguarda
e não encontro

sou narciso em busca
de meu rosto

escuto as águas
seu murmurar inconstante

mas longo é o caminho
para as afagar

mas persisto peregrino
do meu próprio destino

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 16 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 31 e 32


TEIXEIRA DE PASCOAES

há palavras
e gestos nas palavras

um fio de vida
dependurado em cada verso

e um poema que escapa entre as arestas
de uma página
e esvoaça em torno
da luz de um olhar
e este percorre
para além do visto
da aparência das coisas

há palavras
e gestos nas palavras

um fio de vida
que se revela
no secreto ventre
do horizonte

*

Sou pedra que se funde, mal lhe toca
Um ai de dor, um beijo, um sopro etéreo

Teixeira de Pascoaes

o que sou ou fui
ou serei

o que importa o tempo

a pedra ergue-se ao vento e não se importa
que sua carne seja rasgada
pelas suas unhas

como a pedra
também o tempo passa por mim

cumprimento-o
e sigo viagem

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 15 de março de 2015

Prefácio a "Metamorfose do corpo", de Eduardo Montepuez



Este título: “Metamorfose do corpo”; da autoria de Eduardo Montepuez, convoca-nos para uma peregrinação plena de dualidade. Se por um lado o autor, nesta sua estreia em livro, nos traz uma percepção sobre o que rodeia e altera o corpo, por outro nos sugere essas mesmas alterações de dentro. Isto é: como se o mundo das ideias, tal como defendido por Hegel e o mundo material definido por Marx confluíssem nesse espaço metafórico do corpo, corpo em metamorfose, em constante devir.

Da assumpção do abandono, presente logo na abertura, com o assumir do eu, quando refere: “Abandonei o ventre de minha mãe”, esse abandono é justificado com a necessidade da deriva. Fê-lo porque era preciso: “beber os ensinamentos da luz”, entendida como vida. Mas a vida é “o caminho” porque esse é que “fez-se em luz”, seguindo a ancestral lição de Antonio Machado.

Eduardo Montepuez vai-nos levando e desviando por esse caminho, sem que o caminho em si se altere, antes é o corpo que sofre a influência desse caminho, não só por acção deste, mas também por acção do que em si, no íntimo, se vai desvelando.

Se de súbito o poeta afirma: “O murro é a força motriz / Do parto no poema que nasce”, acção exterior no corpo em mutação, logo nos diz que “o poema nasce no âmago do poeta” como se nos enunciasse a precisão do íntimo para a consumação da transformação.

Ler este “Metamorfose do corpo” é encontrarmo-nos perante uma navegação rente ao corpo físico e ao corpo poético porque, observando-os, imaginando-os, tal como escreve o autor: “o Corpo faz-se no tempo / enquanto o poema se afirma no gesto”.


Coimbra, 17 de Maio de 2010


in MONTEPUEZ, Eduardo - "Metamorfose do corpo". Temas Originais. 2010

de "Poemas com rosto" - 29 e 30


ALEXANDRE O’NEILL

        Uma conhecida
  mosca voa
  em Lisboa.
E a vida,
  e seus novelos,
  passa despercebida,
como a mesa servida,
  pelos meus cotovelos.

*

Folha de terra ou papel
tudo é viver, escrever.

Alexandre O’Neill

o que é um poema
uma maçã na boca de uma estrofe
as amoras nas sílabas do verso

o que são as mãos
na invenção da colheita
no recital das estações

sabes por onde me perco e escuto
a pronúncia da terra
é onde aprendo a viver

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 14 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 27 e 28


LUÍS MIGUEL NAVA

é no corpo
que o poema nasce

flui célere
na depuração
dos sentidos

como um rio
que cinzela
as próprias margens

*

Todo ele estava torcido para dentro da memória

Luís Miguel Nava

um nome
é um silêncio em grito
tecido
na epiderme da memória

um rosto
é o esplendor da luz
que de dentro jorra

um nome e um rosto
um poema em construção

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 13 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 25 e 26


ANDITYAS SOARES DE MOURA

o carteiro
mais ou menos
chega sempre à hora certa

traz no saco a tiracolo
novas da distância

de outro tempo
de outra memória

de palavras com música dentro
sílabas
veias ancestrais
onde o novo sangue floresce
eclode na voz de um jogral
na corte
da própria poesia

*

Em um instante: perder as nuvens

Andityas Soares de Moura

frágil é o verbo
que sustenta o poema

raro e precioso

como uma nuvem
ou um vitral
no desfiar do sol

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 12 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 23 e 24


ALBERTO DE LACERDA

traga-se ou traja-se o sol
nas palavras
nas imagens

cada verbo
é um gesto iniciado
num sereno desejo

de ser luz

*

Esclareço a água que envelhece as pedras

Alberto de Lacerda

desbravam as mãos
o ventre da água

decifram
os seus caminhos de sal

talvez um dia as pedras
digam das suas confidências

lágrimas de pedra
à flor das águas

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 11 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 21 e 22


RUI KNOPFLI


para cada homem
um rio que lhe corresponde

o rui knopfli
trazia o seu na algibeira
junto à fonte dos poemas

não era mondego ou tejo
tamisa ou sena

seu nome era um outro
que não constava na memória
dos literatos

mas guardava-o
no mais suave decote
desenhado entre estrofes

e o observava
no rigor das cãs
que o tempo em si semeara

*

Os músculos e o sangue e os nervos
reaprendem cautelosamente o caminho
que os olhos desvendam no dia claro.

Rui Knopfli

cada dia
é o primeiro dia em que vivemos

a magia das ínfimas coisas
se revela em cada gesto

do botão à rosa
do rio ao mar

cada pedaço do mundo
é um naco de pão

há que prová-lo
para aprender a amá-lo

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 10 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 19 e 20


GUERRA JUNQUEIRO

simples é a alma que a seu jeito
plena se descobre
em sua voz

e num gesto de partilha
semeia versos
ventos de mudança

porque onde antes
era erma terra
agora é verde prado

onde as flores insistem em medrar

*

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...

Guerra Junqueiro

tenho entre as mãos um veleiro
de papel
onde adormeço as palavras
e os temporais

no seu bojo naveguei
por símbolos
e imagens
que a custo decifrei

mas sempre que meu olhar
acordou
era novo o mundo
e nova a cifra

tenho um veleiro de papel
frágil
como uma pétala
ou um poema

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 9 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 17 e 18


JUANA DE IBARBOUROU

queda-se o corpo
entrega-se
à extrema serenidade
de uma onda que de manso
nos acaricia
a epiderme de areia

as mãos inventam
o súbito enlace solar

urge uma partida
uma chegada
um porto iluminado

um navio no sufrágio
da intempérie

queda-se o corpo
o meu corpo no teu corpo

um poema nado
de um poema

*

un ser que nos contempla transformado en hoguera

Juana de Ibarbourou

uma só voz
que pronuncia o silêncio
habita as arestas do verso
que jamais poderei escrever

arde numa morada
onde meu corpo se entrega
à magia das palavras

como se as recolhesse
e descobrisse sob a sua pele
um imenso mar de sentidos

um mar imenso
onde sinto a urgência
de navegar

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 8 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 15 e 16


HERBERTO HELDER

Onde se esculpe a boca, abre-se a voz.
A madeira revela
o fogo
das palavras.

Estas, como pétalas,
caem sobre as páginas
que rente ao olhar,
em voo,
se descobrem.

*

As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.

Herberto Helder

imprecisa a aguarela reclama
um só olhar

um só instante sobre as águas
onde o grito se derrama
para que o escutemos

mas eu vou pelas ondas
pela espuma que acorda o areal

ou pelo barco
esboço de vento ou miragem
ao fundo sobre o azul
onde aprendo a respirar

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sábado, 7 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 13 e 14


JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES

pergunto o que é uma ilha senão o homem
que a pronuncia

mas um homem não é a ilha

é a jangada que navega
e indaga a sua própria atlântida

por entre o arquipélago
do verbo querer

*

Não sei o que fazer com a pedra

José António Gonçalves

sangra a pedra o cinzel que lhe não toca
que lhe não rasga a pele o envoltório
embora dois olhares se troquem
e se demanda nada a pedra pare
resina-se o escultor a contemplá-la
e contemplada a pedra nada diz
das lágrimas que o oculto corpo chora

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

sexta-feira, 6 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 11 e 12


JOSÉ FÉLIX

repousa o olhar na pedra
que a forma oculta

as mãos

que iluminam o gesto
e que acordam o cinzel

indagam
a resolução
de um teorema

a palavra

ventre incandescente
do poema

*

depois de um sono doce como a morte

José Félix

esqueçam-me se parto porque quero
se me deito neste leito
e invento uma noite sem fim
ou se me perco neste mar
no sonho insano de ser náufrago
ou se recuso a terra
pendente num ramo qualquer
esqueçam-me estas flores não merecem
esta laje esta sorte este epitáfio
que fenece ao sol nascente

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quinta-feira, 5 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 9 e 10


FLORBELA ESPANCA

eviterno
é o poema
que dentro da própria arte
nasce

exacto e perfeito
evoca as mãos
que ao caos resgatam a ordem

e o que surge
é qual flor subtil
que brilha e arde
no verbo sentir

*

Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!

Florbela Espanca

quando morre um poeta
o sol sorri

sabe o destino das palavras
que plantou
no coração do silêncio

a sua fome de sílabas
a sua febre de música
outros as decifrarão

o poeta agora é rosa
vê como o sol a beija

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

quarta-feira, 4 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 7 e 8


EL REI DOM DINIS

esta é a língua em que vos escrevo
em que vos falo

a que flui
célere
nas veias vegetais de cada verso

onde sonho e amo
onde planto a semente de um país
onde ergo a bandeira
de um desejo
ou as asas
de um poema navegante

*

Ai flores, ai flores do verde pinho,
se sabedes novas do meu amigo!

El Rei Dom Dinis

por que parto se promove
o momento da partida

por que instante se esboça
o nascimento da ausência

cada momento é um escutar
das novas da distância

e nada se pronuncia
nos lábios
das flores do verde pinho

nada cintila neste cais
só o sol
que se derrama pelas águas

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

terça-feira, 3 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 5 e 6


NATÁLIA CORREIA

mátria
flor silvestre que brota
do coração da terra

não há mão
nem humano pensamento
que a faça germinar

nasce pura
como um sol
que teima em regressar à tez do olhar

assim é teu verbo
rebelde e genuíno
matricial

*

ó subalimentados do sonho! 
a poesia é para comer.

Natália Correia

senta-te nesta mesa onde o poema
como a vingança
frio se serve

sabes bem que um verso come-se
e partilha-se
não se guarda

guardar é esquecer
porque um armário na memória
é um túmulo um sarcófago

e não há arqueólogos de versos
a decifrar as entranhas
da alma desabitada pelo sonho

assim senta-te nesta mesa e sê
a boca onde a voz surge
com asas de poesia

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

segunda-feira, 2 de março de 2015

de "Poemas com rosto" - 3 e 4


CASIMIRO DE BRITO

do apolíneo curso anoto o seu nascente
um breve traço de mel
dependurado
na janela semi fechada
meio aberta
do meu quarto

docemente
inicia a invasão
lenta
de todos os recantos

a oriente
o poeta ensaia
a criação de um poema

um pássaro o traz
em seu canto matinal

*

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cinza.

Casimiro de Brito


nada te direi

deixo as palavras à porta
sob o tapete

junto de todos os outros versos
que recusei plantar

nada te pedirei

passo por aqui
como se a música nascesse

no teu corpo
no teu corpo de cinza

e de silêncio

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)

domingo, 1 de março de 2015

Prefácio a "Momentos", de Luís Ferreira



“Como é belo o mundo, o canto de um pássaro... / A melodia do sorriso de uma criança feliz.”

Esta citação foi retirada do livro anterior de Luís Ferreira, “Rio de Sal”, a qual, aliás, citei aquando da apresentação dessa sua obra no ano de dois mil e oito.

Insiro-a aqui, nesta nota breve, porque considero-a em falta neste livro. Isto porque este é, na minha opinião, o dístico catalizador do momento, aquele momento mágico que fez o poeta construir este seu “Momentos...”

Luís Ferreira, pela sua acção poética, descende da árvore da tradição mais relevante da Poesia, não só da que se expressa no nosso idioma, o galaico-português, mas de toda a poesia: a da temática amorosa.

Demandando através das palavras a decifração do amor, surge-nos agora, não com uma visão do rio que passa e desenha o seu próprio caminho, mas com o instante.

Cada poema ergue-se como esboço. Nasce para ser uma peça de puzzle que, gradualmente, ganha a forma, talvez do seu “Mar de Sonhos”, expressão com que titula o seu blogue.

Leio este “Momentos” como a incansável procura da tal “melodia do sorriso de uma criança feliz”, peça a peça esculpida através do ofício poético. Porque criança é o mais expressivo signo de criação, mas também imagem de revolução, de liberdade e expressividade.

Numa outra leitura, é a criança que faz com que o homem se confronte com ele próprio para a descodificação do mundo e, a partir desta, para a construção desse mesmo mundo onde o sorriso de facto o possa ser.

Um mundo, vivido a cada movimento de respiração, porque é aí que cada verso de Luís Ferreira habita, onde a máscara tombe e a face, que só o amor pode revelar, surja plena, eis o que este volume nos oferta.


Coimbra, 2 de Setembro de 2009


in FERREIRA, Luís - "Momentos". Temas Originais. 2009

de "Poemas com rosto" - 1 e 2



EUGÉNIO DE ANDRADE

como são breves as coisas
mais belas do mundo

breves e simples

como a música
escorrendo em torno

das palavras que florescem

*

Um olhar que na fuga se faz ave

Eugénio de Andrade

em redor as pétalas
chamam pelos aromas da estação
indagam do sol a magia
de uma mariposa
de uma abelha insinuante

ou de um poeta
ávido de pólen

ou de voo
no olhar desperto em fuga

in "Poemas com rosto" (e-book, Virtualbooks, Brasil, 2007)