sábado, 18 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 35 e 36


entrega-se o corpo
ao jogo das sombras

desenham-se desejos

há um copo de vinho
no cume da lareira

brilha e baila
rubro
no corpo da chama

a sombra

*

escreve-se sobre a terra
o movimento perfeito

uma ave
desenhando uma elipse
mesurando o universo

ou a música
o cântico iluminado de uma flor

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

sexta-feira, 17 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 33 e 34


este é o parto anunciado
as mãos que lhe afagam a face

das entranhas
a forma surge plena

casco
proa
mastro

palavras navegantes
nadas da seiva
como fonte inaugural
de um verso

*

a noite
é uma aguarela
suspensa no olhar dos rios

entre a folhagem de uma árvore

no canto deliciado
de um sereno vento
de visita

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

quinta-feira, 16 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 31 e 32


a saudade

que se veste de azul
em seu olhar vegetal
moldado pelo vento

é desenhada pelas aves
quando esboçam a partida

*

quem a plantou
sonhara com seu destino

dera-lhe corpo de barco
corpo de cinzel

que enseja
depurar as ondas

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

quarta-feira, 15 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 29 e 30


conjuga-se o verbo terra

onde antes fora ferida
de enxada
agora é raiz

veia que indaga
o coração da água

*

os pássaros semeiam o desejo
da viagem

da distância

no frondoso corpo
de uma árvore

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

terça-feira, 14 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 27 e 28


agora é o ágolo
que leva o peso
dos tempos
das memórias

árvores
gestos vorazes do fogo

qual esponja que na ardósia
apaga o nome
da própria infância

*

escuta

o vento passa célere
rente ao dorso da semente

como se inventasse um caule
o devir de um corpo

a palavra inaugural
do próprio poema

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

segunda-feira, 13 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 25 e 26


enquanto o sol aprende
as canções da erva

sobem aos pastos
os rebanhos

*

é súbito o acordar
da música

os seus acordes de orvalho
ascendem
nos passos dados

em silêncio
rumo ao planalto
pelo pastor

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

domingo, 12 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 23 e 24


cada palavra traz o vento
no seu ventre

despede-se da boca

em voo

*

observo as folhas que se despedem
do corpo das árvores

descrevem a queda

um voo
no dorso do vento

que as aguarda e acolhe

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

sábado, 11 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 21 e 22


o que antes eram destroços
ruínas
vestígios de passos apressados
dados e perdidos
ao longo dos anos
agora ganhavam
a coloração pura de um sorriso

morangos amoras nêsperas
a surpresa de um sabor
a descoberta de algo
que se julgara
irremediavelmente
perdido

como se fosse um álbum fotográfico
em que cada foto
nela trouxesse
para além da imagem
nela cativa
uma oculta história
urgente a contar

*

canto o parto do outono

as folhas
em ânsias de voo

a melodia
da chuva na vidraça

ou a voz
na lareira renascida

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

sexta-feira, 10 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 19 e 20


nega-se a escrita da pedra
o epitáfio
a palavra fim

o nome da eterna saudade
entre margens

duas datas
dois marcos geodésicos

a viagem inscrita
na face dos caminhos

nega-se o destino
das cinzas

como se procurássemos
soluções
para adiar o inadiável

*

é nestas casas
nesta aldeia

onde a infância regressa
entre o fumo ascendente da lareira

que decifro o mistério da morte

compreendo os rios
e o seu desejo de sal

a conjugação do sol
no dorso do poente

desenha-se o regresso no momento
da partida

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

quinta-feira, 9 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 17 e 18


recolho o rio
traço azul sobre a parede

a música
do seu passar sulca a cal
por onde o sol se revê

vendo-o
recordo a frescura
das suas águas

o estio flui nas veias da memória

*

a enxada engravida a terra

extensa
a pele abre-se

indaga-se
na urgência da semente

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

quarta-feira, 8 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 15 e 16


da alvura da farinha
recordo o encanto da água

as mãos criando
conjugando
a morte da fome

e o forno quente
clamando a fecundação
de seu ventre

e a fragrância afagando
as arestas da casa
esculpindo a memória
em negros traços de alegria

*

a cinza o círculo desenha
na face do pó

bem sei
é na sede da terra
que se esboça
o nascente e o poente
do próprio sol

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

terça-feira, 7 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 13 e 14


sinto nas mãos
o baraço de um pião

este roda
rodopia

no pátio
desenha a ilusão

o mundo inteiro
na palma da minha mão

*

remendados os bolsos riem como
loucos

têm a sageza
do tempo

e a alegria
de caricas e berlindes
de fisgas e piões

têm na memória
índios e cowboys
polícias e ladrões

remendados
os bolsos riem
dos buracos que têm

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

segunda-feira, 6 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 11 e 12


todos partem

emoldura-se de pó
a distância

uma lágrima
cumpre o seu mistério
descendente

quem regressa
serenamente aguarda
a estação das colheitas

conjuga as cinzas
com o verbo da terra

*

na boca do vento
as silvas pronunciam
o hálito das amoras

lambem os muros
na ardência das sombras
no jogo do sol

festejo a chegada das aves
riachos correndo
sulcando as margens
na face das pedras

na boca do vento
encontro o riso das compotas
nos meus olhos de menino

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

domingo, 5 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 9 e 10


vejo a mágica palavra

a primeira desenhada
na minha ardósia

o giz colorido
a mão fugidia

vasco da gama
pedro álvares cabral
fernão de magalhães

caminho
marítimo para a índia
terras de vera cruz
circum-navegando o mundo

tudo tão pequeno

a giz na ardósia meu nome
descoberto
conquistado

*

o tear iluminava-se
o azeite entregava-se
ao fogo

numa secreta melodia
a luz brilhava

entre acordes
o fio inventando o corpo
com que minha mãe desenha
um beijo

a porta de entrada
no mundo dos meus sonhos

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

sábado, 4 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 7 e 8


deitei-me
longa fora a viagem

as estrelas como lençol estendido
aquecendo o olhar

e esta pedra
sussurrando imagens
como a almofada da infância

se o olhar fechasse
sabia
que seria feliz

*

ouço a voz da minha mãe

minha avó fora para os campos
e meu avô
com os rebanhos para os pastos

meu pai elabora a madeira
que gravará os passos
na casa senhorial

minha mãe ficara em casa
canta a roupa estendida
ou o pão do forno saindo

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

sexta-feira, 3 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 5 e 6


a casa

ruínas
que a memória acordava

*

o quarto ali estava
era agora o recanto das aves

em seu canto
ou no alvoroço
de seu voo
reinventavam a jóia

essa
que habitara aqui
neste preciso lugar

chamava-se amor

recordo

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

quinta-feira, 2 de abril de 2015

de "O livro do regresso" - 3 e 4


a distância
vestia-se de xisto

conjugava o verbo da neve
ou da chuva

dentro
a madeira gritava
ainda
o esplendor do fogo

ou talvez uma história

uma criança correndo
em redor de um poema

*

eram brancos os fios desfiados
pelo vento

havia um sabor a sal
impreciso
no olhar

onde as mãos tocavam
sentia-se o fluido
sereno
de uma voz antiga

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Prefácio a "O áspero hálito do amanhã", de Alberto Pereira



Este “O áspero hálito do amanhã”, que tem agora entre mãos, apresenta-se estruturado sob três ciclos autónomos: “Dói-me a utopia”, “Arquipélago da loucura” e “Mordem pincéis nas palavras”. 

Mas esta aparência autónoma é exactamente isso: meramente aparente. É uma ilusão elaborada como hipótese de caminho, de uma via a seguir no processo criativo. Uma demanda em que o criador se veste como usufruidor da criação artística para, posteriormente, proceder à recriação: erguer dentro de um corpo um corpo outro.

Talvez por isso Alberto Pereira tenha escolhido, como epígrafe a este seu volume, um dístico de Pedro Sena-Lino onde este menciona: 

Não somos feitos de pele,
somos feitos de feridas.

algo que nos abre o corpo, que nos incita ao doloroso processo da indagação. Essa dor presente logo no título do primeiro movimento: “Dói-me a utopia”. 

Mas que dor é esta que a ferida em nós desperta?, é, na minha leitura, a dor essencial vista como purificadora da oficina para que o processo criativo se possa iniciar.

Não sei como dizer-me que és um hemisfério de desejo
afogado na nudez da memória

Pelo que a ferida de que somos feitos radica no centro de nós, a nossa própria memória, espaço privilegiado para a edificação da obra sentida como “hemisfério de desejo”.

No entanto, não basta preparar o espaço e deter a consciência da possibilidade do erigir em obra o que em si, “na nudez da memória”, se intui existir. Há portanto que possuir os instrumentos e a estes atribuir as funções necessárias para dar continuidade ao processo criativo.

Surge-nos então o “Arquipélago da loucura”, conjunto de corpos, como a própria palavra arquipélago indicia, cada um com as suas especificidades, mas que formam um todo. 

Mas este é um todo em mutação, onde “a abrupta harmonia na quietude do imperceptível”, que se descobre quando “O tempo acende o sono dos sorrisos e a cada dia que passa nascem ilhas”, novos artefactos porque novas são as necessidades para o desvelar da obra, é um arquipélago que cresce a cada passo sob o olhar atónito do criador.

Há a oficina e os instrumentos e a obra surge no derradeiro movimento: “Mordem pincéis nas palavras”. O que aí leio é um contínuo diálogo, quase intertextual com os mais diversos quadros, imagens que foram reavivadas, resgatadas à memória.

Aí Alberto Pereira lança mão ao que elaborou anteriormente para nos trazer uma partilha, não de meras impressões, mas, tal como mencionei, do que é fruto de um intenso diálogo com o objecto de arte, o que desta existia em si e do seu próprio contexto.

Um criador, que assume a função da fruição, do outro em si, para erguer, recriar e nos brindar com este “Áspero hálito do amanhã”. 


Coimbra, 25 de Outubro de 2008  


in PEREIRA, Alberto - "O áspero hálito do amanhã". Edium Editores. 2008

de "O livro do regresso" - 1 e 2

 


é outro o olhar que nasce
no poente

embora de asas feridas
cansadas

voa rente ao espanto
ou da semente
de onde outrora partira

*

no dorso do vento
pelos caminhos do monte
viajam frágeis vestígios
de um cântico

ou de um poema
de súbito bordado a oiro
pelas bátegas
céleres mas suaves
do sol

in "O livro do regresso" (Edium Editores, Matosinhos, Portugal, 2008); "Viagem pelos livros" (Escrituras, São Paulo, 2011) - Prémio de Poesia Raul de Carvalho - 2005, organizado pela Câmara Municipal de Alvito